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Uma proposta para a triagem de pacientes de Covid-19 nas UTIs

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Uma proposta para a triagem de pacientes de Covid-19 nas UTIs

Essa é a íntegra da entrevista com Marco Azevedo, professor de Filosofia na Unisinos, concedida para ao artigo Bioética e Covid-19: como tomar decisões que afetam vidas?

“Se for preciso decidir entre dar prioridade a uma dentre duas pessoas, e se uma delas for um jovem e a outra uma idosa, como deveríamos decidir?”

Marco Azevedo é médico e professor de Filosofia na Unisinos. Do ponto de vista privilegiado por esta formação dupla, conversamos sobre alguns dos principais desafios bioéticos da pandemia. Azevedo fornece uma detalhada resposta sobre uma proposta que elaborou, com outros três colegas, sobre os critérios de triagem. Por email, conversamos também sobre passaportes imunológicos, sua preferência pelo termo “isolamento físico”, e perspectivas sobre o futuro pós-pandemia.

1. Você é médico e professor de Filosofia. Para começar nossa conversa, você poderia nos contar como está sua rotina profissional, agora nestes tempos de pandemia?

Sou médico com especialização em pediatra e em medicina de família e comunidade, mas sou médico também do Hospital de Pronto Socorro, em Porto Alegre, há 20 anos, onde atuo no serviço de Emergência. Também faço medicina domiciliar, principalmente na área de pediatria, onde vejo crianças e alguns adultos com doenças graves e crônicas, que precisam atendimento domiciliar. Além disso, sou doutor em Filosofia pela UFRGS, com estágio pós-doutoral na Universidade de Oxford, e estou na Unisinos há 10 anos como professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Nesse contexto de pandemia, tenho atuado como professor em modo remoto, mas, como médico, tenho mantido meus plantões e visitado meus pacientes de medicina domiciliar. No consultório, tenho dado consultas online; algumas “visitas” a pacientes estáveis também estão sendo feitas na modalidade remota. Como todos estamos sob risco, as medidas de precaução de fato mudaram muito nossa rotina. Como médico, uso máscara em todos os atendimentos e na circulação nas áreas do hospital. No atendimento, há uma distinção de áreas para atendimento a pessoas com febre e sem febre. Nas pessoas com febre, precisamos nos paramentar com avental descartável, touca, óculos de proteção e luvas. Além disso, os cuidados com higiene e lavagem de mãos se tornaram mais “obsessivos”. Parece-me que algumas dessas mudanças gerarão efeitos para o período que se seguirá após a redução da curva da epidemia. Nas atividades de docência, a experiência tem sido interessante. Estamos nos adaptando a esse novo modo, mas noto que estamos nos adaptando bem.

2. Na sua prática médica como emergencista, o que você tem percebido sobre o impacto da pandemia nos pacientes? Algo lhe chama atenção?

Em Porto Alegre, e em muitas cidades e regiões do nosso estado, é nítido que as medidas de isolamento físico e de educação das pessoas para autocuidados e higiene pessoal estão tendo um bom resultado. Aqui, estamos conseguindo manter os hospitais com vagas disponíveis nas UTIs. Nota-se também uma redução significativa dos atendimentos e dos casos diagnosticados. Essa situação contrasta com o que estamos observando principalmente em estados do Norte e do Nordeste do país, onde estamos vendo um quadro de incremento da taxa de contágio, com reflexos no sistema de saúde. Em São Paulo e Rio de Janeiro já era esperado que teríamos um maior número de casos, pois foram as cidades mais afetadas inicialmente. Nessas cidades, especialmente no RJ, temos um aumento dramático dos casos nas comunidades, onde a aglomeração humana é sabidamente maior. Embora exista uma polêmica sobre a eficácia das medidas de distanciamento físico (prefiro “físico” a “social”, pois o distanciamento físico não implica necessariamente distanciamento social), criticada, dentre outros, pelo ex-secretário e ex-ministro, Deputado Osmar Terra, as evidências me parecem ser convincentes em favor do acerto da medida. O Rio Grande do Sul está no momento procurando implementar um programa inteligente de distanciamento controlado. Sinceramente, achei uma medida excelente e penso que aqui estamos em boas mãos. 

3. Como professor de filosofia, você tem se dedicado, entre outras, às áreas da filosofia da Medicina e da bioética. Como essas áreas ajudam a pensar sobre a pandemia que estamos vivendo? Lembremos que, possivelmente, muitas pessoas não conhecem o campo da bioética.

A filosofia, não só a bioética, sempre me ajudou a pensar melhor a minha condição e a minha atividade como médico. Penso que alguma formação em filosofia faria bem no processo de formação do médico. Não vejo, porém, a bioética como uma área da filosofia, mas em uma área interdisciplinar ampla em que a filosofia faz parte (infelizmente, pouco). Já escrevi um artigo inclusive sobre isso, cujo título é provocador: “Por que a bioética não é parte da filosofia”. Darlei Dall’Agnol, meu amigo, e professor na UFSC, inclusive já escreveu criticando minha posição. Penso que faz falta na bioética de pessoas com formação em filosofia. Sobre a filosofia da medicina, trata-se de uma área que se confunde em parte com a bioética, mas seu escopo de interesse na medicina é mais amplo. Os filósofos da medicina se interessam não apenas por temas de ética, mas também (e até principalmente) por temas de metafísica (o que são pessoas? O que entendemos por saúde? O que entendemos por “morte”? O que entendemos por “consciência”?), temas de epistemologia (é a medicina uma ciência ou uma profissão? A medicina baseada em evidências representa um novo paradigma “científico”?), além de temas de ética, mas amplamente (“saúde” é uma forma de bem-estar um um meio para obtenção de bem-estar? Bem-estar é objetivo ou subjetivo?), além dos temas típicos de bioética (ética da vida, ética e animais, ética clínica). 

4. Gostaria de abordar, agora, alguns pontos específicos. Em artigo publicado recentemente no Estado de São Paulo, você e outros três autores debatem o tema da alocação de pacientes na UTI no contexto de uma pandemia. Quais são os principais desafios bioéticos envolvidos nisso? Na sua opinião, como estamos lidando com isso, no Brasil?

Há alguns meses, propus a Darlei Dall’Agnol, Alcino Bonella e Marcelo de Araujo criarmos um grupo de trabalho (a princípio, sem formalidade) para pensar sobre temas de filosofia e ética sobre a pandemia e seus reflexos no nosso país. Elencamos inicialmente dois temas para pensar: o tema da triagem de pacientes nas Emergências e UTIs (dada a impossibilidade conhecida de alocar ventiladores ao mesmo tempo para todos os que venham a precisar) e o tema dos critérios para uso de medicamentos “off label” ou ainda em fase de investigação no tratamento dos pacientes. O resultado desse estudo intenso, praticamente diário e na modalidade remota, foi a elaboração de dois textos sobre a triagem (um inicial, mas genérico, publicado no Estadão, e outro, mais detalhado, que foi agora recentemente publicado na Folha de São Paulo) e um artigo submetido e aceito para publicação na revista Veritas, sobre a pesquisa científica e o uso clínico principalmente da Cloroquina e da Hidroxicloroquina nos pacientes com Covid-19. Mas gostaria de falar um pouco sobre o tema da triagem. Esse é o tema que mais me interessou. Ele envolve questões importantes sobre ética da alocação de recursos, e questões complexas sobre como devemos comparar (e se é possível comparar) vidas humanas. Muitos consequencialistas têm defendido teorias éticas do bem-estar para as quais se admite “pesar vidas”. John Broome, de Oxford, tem um livro importante nesse sentido, “Weighing lives”, de 2004. Broome é um dos que defenderam que devemos pensar em como promover o máximo benefício possível, propondo critérios para conflitos de decisão que instigam os filósofos, e às vezes assustam as pessoas comuns. Por exemplo: se for preciso decidir entre dar prioridade a uma dentre duas pessoas, e se uma delas for um jovem e a outra uma idosa, como deveríamos decidir? Seria a morte de um idoso um evento pior do que a morte de um jovem? Há argumentos convincentes de que é errado dar prioridade a um idoso caso isso implique eliminar o futuro de um jovem. Isso considerando apenas e tão somente a questão da idade. Trata-se de um dilema diferente, e mais complexo e polêmico, do que decidir entre salvar alguém que provavelmente sobreviverá menos do que um ano após a alta (não por sua idade, mas por sua condição prévia de saúde) e alguém com boas chances de sobreviver mais anos, sem lesões ou incapacidades. Parece-me óbvio que se trata aqui de decisões diferentes baseadas em princípios diferentes. Em medicina, temos critérios que permitem avaliar quais pessoas doentes têm maiores chances de sobrevivência após a alta, independentemente de quanto tempo elas viverão após isso. Escores clínicos (como o SOFA, sigla do chamado de “Sequential Organ Failure Assessment”, que avalia, de forma dinâmica, as chances de um paciente de desenvolver falência de múltiplos órgãos após admissão em uma UTI, dada sua condição clínica presente, e conferido por escores atribuídos ao funcionamento de seis sistemas vitais: respiratório, neurológico, hematológico, hepático, renal e cardiovascular) permitem avaliar a chance de sobrevivência pós-alta e podem ser aplicados para classificar os pacientes em grupos de máxima, média e baixa probabilidade de sobrevivência. De um ponto de vista consequencialista, em emergências deveríamos dar prioridade às pessoas com maior chance de sobrevivência após o tratamento, já que o custo de dar prioridade aos pacientes mais graves levaria a piorar a condição dos menos graves, resultando em mais mortes prováveis em termos globais. Isso, claro, admitindo-se que é preciso estabelecer prioridade dada a impossibilidade prática de alocar recursos de suporte vital, como ventiladores, para todos ao mesmo tempo. Isso não significa abdicar do esforço de tentar atender a todos de forma igual. Significa estabelecer uma ordem de prioridade para que alcancemos os melhores resultados possíveis em termos de mais vidas salvas, sem perder de vista o ideal de considerar a todo e qualquer um de forma neutra e impessoal.

Infelizmente, esse ideal de garantir recursos plenos para todos e ao mesmo tempo é inatingível em situações de emergência. Para que possamos evitar ter de tomar tais decisões difíceis, é da máxima importância reforçar as medidas de saúde pública que orientam o distanciamento físico, cujo objetivo é evitar o colapso dos sistemas de saúde e dar a todos oportunidade de atendimento em todos os níveis do cuidado.

Nossa proposta, em suma, consiste em classificar os pacientes em três grupos: o de máxima, média e baixa prioridade. As cores vermelho, laranja e amarelo poderiam ser usadas para indicar simbolicamente esse três estratos. De início, sugerimos alocar os pacientes para os quais indicaríamos limitações de tratamento, mas cujos familiares não estão preparados ou discordam dessas medidas, como tendo prioridade menor, comparados aos pacientes para os quais não indicaríamos cuidados paliativos. Para estratificar os pacientes nesses três grupos de prioridade para uso de suporte vital em UTI parece-nos útil empregar escores clínicos como o SOFA (muito embora isso não seja obrigatório). Para desempates intragrupos, sugerimos o emprego de outros critérios. Primeiramente, sugerimos aplicar o princípio retributivo e instrumental que recomenda acolher primeiro aqueles que trabalham nas UTIs. Também admitimos como critério de desempate a seleção por faixa etária, assumindo que não salvar pessoas com chances de viver uma vida longa é pior do que arriscar a vida daqueles que já tiveram a oportunidade de viver o bastante. Sabemos que esse critério é polêmico, mas ele tem uma base consequencialista bastante sólida. O último critério de desempate é o sorteio. Trata-se de um critério absolutamente imparcial. Caso o critério de idade não seja considerado aceitável, o sorteio segue como mais justo do que a ordem de chegada (um critério sabidamente arbitrário, que não pode conferir direitos em situações de emergência).

Para chegar à nossa proposta, estudamos bons artigos recentemente publicados por bioeticistas ligados a centros internacionais de bioética prestigiados, como o Hastings Center, e elaboramos uma versão que nos pareceu mais coerente e simples. Organizações médicas, como a AMIB, a Associação de Medicina Intensiva Brasileira, também elaboraram propostas concomitantemente à nossa, tendo por base a mesma literatura. A AMIB, a ABRAMEDE, ACBG e ANCP elaboraram em conjunto um documento bem fundamentado e bastante detalhado, e que apresenta ao final um protocolo para a tomada de decisões sobre a triagem de pacientes para admissão em UTI no contexto da epidemia de Covid-19. O documento é ótimo, mas sua proposta de protocolo propõe uma pontuação global para cada paciente avaliado, visando com isso gerar uma lista de pacientes ordenados da menor à maior pontuação (quanto mais pontos, menos prioridade). Ocorre que para se chegar a essa pontuação global somam-se escores de avaliação criados para avaliar itens de naturezas diversas. Nessa proposta, primeiro atribui-se um escore aplicando-se também o SOFA, um escore de gravide clínica (o documento propõe atribuir 1 a 4 pontos conforme intervalos do SOFA), somando-se depois pontos (3 pontos) pela presença de comorbidades graves com prognóstico de sobrevida prévia à admissão menor do que 1 ano, e a esses pontos somam-se ainda pontos atribuídos a uma escala de performance, a ECOG (sigla do Eastern Cooperative Oncological Group), cuja finalidade original é avaliar o desempenho e funcionalidade de idosos portadores de câncer. Penso que há vários problemas nesse método. Trata-se de escores com funções diferentes, empregadas em contextos clínicos diferentes. Nada se sabe sobre o valor do uso combinado desses instrumentos em tomadas de decisão envolvendo pacientes portadores de Covid grave. A intenção, suponho, foi a de aliar à avaliação da gravidade clínica (por meio do SOFA) considerações sobre autonomia e qualidade de vida, além de considerações éticas sobre a terminalidade. Mas, observe-se que o ECOG é na verdade um “preditor de saúde” e não um escore de prognóstico. Por que considerações sobre a qualidade de vida previamente estimada deveriam ser consideradas no processo de tomada de decisão sobre prioridades na alocação de suporte vital em UTIs? E por que dar 3 pontos a pacientes portadores de doença terminais? Por que não 2 pontos, ou 5? E por que o grupo liderado pela AMIB decidiu, depois de ter proposto inicialmente, eliminar da contagem considerações sobre a faixa etária dos pacientes? Seria em vista da alegação de que considerações sobre a idade resultam preconceituosas para com os idosos? Todavia, não seria igualmente preconceituoso dar mais pontos a pessoas incapacitadas para o autocuidado? Por que um jovem completamente incapacitado, restrito ao leito e completamente dependente de outros, acometido, porém, pela Covid, deveria receber pontuação que o colocaria abaixo em ordem de prioridade comparado a alguém com o mesmo prognóstico clínico, mas previamente ativo e independente?

Penso que a proposta que estamos sugerindo é mais coerente e parcimoniosa. Estamos, certamente, abertos ao debate. Nossa intenção é contribuir com nossa expertise em ética, abrindo a possibilidade para discussões importantes sobre as decisões em contextos como o que estamos vivendo, que exigem eficiência, rapidez e justiça. No entanto, somos apenas professores e a decisão de fato cabe aos organismos estatais.

5. Me parece que a situação de uma pandemia levanta muitas questões bioéticas. Outra que vejo ser discutida é a questão dos “passaportes de imunidade”. O exemplo mais recente de que tenho notícia é um artigo de opinião publicado no JAMA. Embora a ideia seja ancorada em princípios epidemiológicos (reduzir o risco de contaminação, etc) ela levanta questões bastante sensíveis. Qual sua visão sobre o assunto?

Trata-se de outro tema interessante, mas confesso que pensei pouco sobre ele. O artigo que mencionas foi publicado por um jurista e por um bioeticista, justamente Ezequiel Emanuel, da Universidade da Pensilvânia, que também liderou um dos artigos mais importantes sobre o tema acima, da triagem. A ideia é de que seja garantido a pessoas com sinais de imunidade ao Covid-19 privilégios de passagem. Tais pessoas teriam vantagens de circulação entre fronteiras comparadas a pessoas ainda sem imunidade, isto é, que não contraíram a doença (já que ainda não temos vacina para a Covid-19). Há certamente um risco de estigmatização e se trata inequivocamente de um privilégio relativamente à permissão de ir e vir. Em tese, argumentam Emanuel e Persad, que a medida promove a liberdade dos indivíduos que já foram infectados com COVID-19 sem piorar a situação daqueles que não foram infectados, maximizando os benefícios em termos globais, ao permitir-se que pessoas imunes se envolvam em atividades econômicas e que protege os menos favorecidos, permitindo cuidados mais seguros para populações vulneráveis. Trata-se de um argumento francamente consequencialista. O problema é que, após a epidemia, certamente teremos muitas pessoas sem imunidade, especialmente em países ou localidades que se mantiveram eficazmente afastadas dos centros do contágio. A medida, se usada por largo prazo, certamente implicará preconceitos e limitações injustificadas à liberdade daqueles que ficaram protegidos da contaminação. Isso poderá atingir inclusive grupos vulneráveis e pobres, sem protegê-los. Imagine-se que depois da pandemia, populações de países africanos venham a ter maior prevalência de indivíduos não contaminados, logo, ainda não imunes à doença. Deveríamos impedi-los de circular já que estariam suscetíveis de serem contaminados e, assim, reinstalar a epidemia? Acho uma medida problemática, válida apenas como peça auxiliar no período atual e imediato da epidemia, como instrumento auxiliar para reduzir o ônus de eventuais medidas de lock-down, por exemplo. Mas após o ápice da epidemia, penso que redundaria em prejuízos injustificados aos que não ficaram imunes.

6. Outro assunto que vem ganhando corpo é a unificação das filas do SUS e dos serviços privados de saúde no atendimento a pacientes da Covid-19. Pelo que leio, isso já está ocorrendo em muitos hospitais, mas há algumas resistências. O próprio ministro da Saúde defendeu, recentemente, que os leitos privados não podem ser “tomados”. Qual sua visão sobre o assunto? Quais são os argumentos, do ponto de vista da bioética, para a unificação (ou separação) das filas?

A unificação das filas já é uma realidade em algumas situações, como no sistema único de transplante de órgãos. Em uma situação de emergência e de escassez de recursos capazes de salvar vidas humanas, parece-me que essa medida é justa e igualitária. Ela evitaria criar situações de disputa desigual por recursos em situações para as quais ninguém está preparado para tomar a decisão voluntária de escolher pelo sistema privado em alternativa ao público. Por outro lado, essa decisão pode ser necessária em alguns contextos. No Brasil, ela parece imprescindível nos estados do Norte e Nordeste, mas não parece razoável no sul, onde até o momento não há ainda carência de leitos nos hospitais públicos e há uma alta ocupação, ao contrário, dos leitos dos hospitais privados. 

7. Gostaria agora de sair um pouco do contexto médico e hospitalar da pandemia e propor olhar para a sociedade como um todo. Diariamente, estamos nos confrontando com decisões individuais (como usar uma máscara ou evitar aglomerações) que tem um impacto no coletivo. Isso sempre ocorre, mas agora, na pandemia, se tornou mais evidente. Como você enxerga essa tensão entre o individual e o coletivo, no Brasil?

Em filosofia, temos um debate longo sobre o conflito entre os princípios que preconizam o direito à não interferência e os princípios que protegem interesses públicos. Sob que circunstâncias o interesse público ou comum deve preponderar sobre os interesses e eventualmente mesmo sobre os direitos individuais ou privados? Ronald Dworkin tornou famosa a tese de que direitos são trunfos, que se aplicam sobre interesses coletivos especialmente. Segundo essa visão, nenhum interesse coletivo pode preponderar sobre um interesse individual ancorado em um direito individual. Diante de tais interesses coletivos, o indivíduo pode erguer seu direito como um trunfo (como em um jogo de cartas). Todavia, há interesses coletivos ancorados na proteção a direitos dos indivíduos. Dworkin considerava que um interesse coletivo somente poderia preponderar sobre um direito individual se a proteção desse interesse comum estiver justificado justamente no ideal de proteger os direitos individuais em questão. A liberdade de expressão de alguém não poderia, por exemplo, ser solapada senão por algum interesse coletivo cujo princípio seja o de justamente proteger a liberdade de expressão de todos. No caso da saúde pública, o interesse difuso de combater a epidemia obrigando outros a usar máscaras ancora-se justamente no objetivo coletivo de proteger o direito que cada indivíduo possui in rem de não sofrer males ou danos em virtude de adoecer por estar exposto ao contágio. É diferente, por exemplo, de exigir que alguém seja forçado a usar, por exemplo, o cinto de segurança, quando essa medida apenas protege o usuário do dispositivo. Ou forçar alguém a votar nas eleições (por que a permissão de não votar prejudicaria o direito dos demais de participar das eleições?). Libertarianos usualmente rejeitam forçar alguém a medidas restritivas quando o prejudicado é apenas o potencial usuário delas. Se a imprudência de alguém não expõe outros a riscos ou danos (veja-se o famoso princípio do dano de John Stuart Mill), forçá-lo a adotar certa atitude resultaria em paternalismo injustificado. No caso da obrigação de usar máscaras, trata-se de uma situação completamente diferente. A medida visa a proteger a todos, e sobre o mesmo assunto, e não apenas o indivíduo imprudente.

8. No início da pandemia, alguns políticos e economistas argumentaram que “a economia não pode parar”, em crítica aos defensores das medidas de fechamento do comércio e isolamento social. Como a bioética vê esse dilema entre “saúde” e “economia”?

Vejo o dilema como uma decisão entre Cila ou Caríbdis. Na Odisseia, Homero narra o último desafio de Ulisses como o desafio de ter de passar por um desfiladeiro marítimo, sob o risco de duas ameaças. De um lado, próximo a uma encosta íngreme, há um mostro de sete cabeça, Cila, um animal violento que costuma devorar os tripulantes das embarcações que por ali se aproximam. Do outro lado, há um redemoinho em cujas profundezas encontra-se um mostro, Caríbdis, forte o suficiente para engolir uma embarcação inteira. Ulisses precisou tomar uma decisão, sabendo que seria impossível escolher uma alternativa sem riscos. Ele decide então enfrentar Cila, sabendo que teria perdas, a ter de enfrentar Caríbdis  Ao decidirmos enfrentar o risco de prejuízos econômicos sérios, estamos tomado essa opção como Cila, assumindo que a morte evitável de pessoas equivale a enfrentar Caríbdis. Há quem argumente que o prejuízo econômico das medidas de isolamento social prolongado é equivalente a Caríbdis. Para alguém como eu, que tem dificuldades para avaliar com precisão prognósticos econômicos, mas que sabe avaliar melhor prognósticos em saúde, a tendência é a de enxergar a economia como Cila e a morte de pessoas em massa como Caríbdis. Crises econômicas são fenômenos recorrentes e parece plausível que após vencida a pandemia teremos condições ótimas de recuperar o dano gerado. Um argumento forte contra essa visão tem sido defendido pelo deputado Osmar Terra. Terra tem uma visão cética sobre nossas possibilidades de conter a epidemia. Ele argumenta que as previsões catastróficas feitas inicialmente por um grupo de epidemiologistas e cientistas do Imperial College de Londres foram sobrestimadas e que sem o isolamento social teríamos algo muito semelhante ao que estamos observando agora. De fato, o isolamento social é incapaz de conter a epidemia. Mas o próprio Osmar Terra, inadvertidadmente, deu argumentos em favor da estratégia do isolamento social. Perguntado sobre como ele explicaria o fato de que no sul tempos uma prevalência e uma incidência menores de contaminação, Terra explicou dizendo que isso se deve ao fato de que nesses locais o vírus não está em circulação como está nos centros urbanos maiores, como São Paulo e Rio de Janeiro, e como agora está ocorrendo no norte-nordeste do país. Mas não seria o sucesso das medidas de isolamento a causa dessa disparidade? Terra acredita que não, que isso seria uma coincidência infeliz. Todavia, ele também chegou a admitir que o isolamento somente seria uma estratégia útil justamente em locais onde não há grande circulação do vírus. Ora, mas se no sul temos uma circulação baixa do vírus (o que explicaria a baixa frequência da doença), pelo mesmo argumento, não seria justamente aqui onde deveríamos aplicar o isolamento? E o que fazer nesse caso nos grandes centros urbanos? Ora, que medida outra evitaria a disseminação da doença para os lugares em que a circulação ainda é baixa? Que medida outra, afinal, evitaria o colapso dos sistemas de saúde locais já que não temos como prevenir o adoecimento e o contágio físico? 

9. Recentemente, o filósofo francês Michel Maffesoli escreveu artigo apostando que o mundo sairá melhor da pandemia. Na visão de Maffesoli, a pandemia nos fará reencontrar valores esquecidos, como solidariedade, afeto e alteridade. De que maneira você acha que a pandemia afetará nossa sociedade?

Penso que Maffesoli tem razão. Lembro aqui um belo artigo da filósofa Annete Baier. Ela foi uma das maiores estudiosas de David Hume. Ela faleceu em 2012, em seu país nativo, a Nova Zelândia. Baier tem um artigo intitulado “Unsafe loves”, publicado como capítulo no livro “Moral Prejudices”, de 1994. A frase de epígrafe é de Hume: “Destroy love and friendship: what remais in the world worth accepting?”. Essa é uma das mais belas frases do grande filósofo escocês, com certeza. O artigo é um sublime elogia à filosofia da compaixão de Hume. No artigo, Baier, como de praxe, critica Kant, a quem via como um defensor de uma visão moral obtusa e individualista. Uma das passagens de Kant que ela cita põe Kant a desprezar o amor como um princípio que incita as pessoas a se aproximarem umas das outras, ao passo que o respeito garante a elas certo distanciamento seguro. Mas amor e respeito podem conviver juntos, certamente. Há situações em que por amor nos distanciamos. Seguindo Hume, ela diz que o amor não é apenas uma emoção imprudente, como diria Kant, mas também um vínculo emocional complexo entre duas ou mais pessoas e que consiste em uma forma especial de interdependência emocional imbricada em nossa natureza. A razão, porém, pode nos auxiliar a garantir nossos laços amorosos em situações em que a proximidade física que o amor conclama pode se tornar ocasionalmente arriscada. É por isso que concordo com alguns amigos, como o sanitarista Ivan França Júnior, da Faculdade de Medicina da USP, que me persuadiu a usar a expressão “distanciamento físico” e não “distanciamento social” como nome para as medidas que estamos coletivamente tomando (apesar de algumas vozes dissonantes equivocadas). Isso porque o distanciamento físico não preclui, ao contrário, incentiva a proximidade social entre as pessoas. Penso que a pandemia nos trouxe sim a esperança de um futuro mais solidário. Trará também novas oportunidades até mesmo para a economia. Não tenho dúvidas de que nos aproximaremos mais uns dos outros após vencermos esse obstáculo temporário, mesmo que ele venha a se tornar recorrente.

10. Gostaria de finalizar nossa conversa lhe agradecendo a atenção e deixando um espaço livre de manifestação sua, caso haja algo que não abordamos e você gostaria de mencionar ou reforçar.

A pandemia de fato trouxe a nós situações inusitadas. Trouxe-nos o medo, talvez um dos motivos paradoxais de sucesso das medidas de isolamento. Trouxe-nos também esperança, pois mesmo sabendo que não será fácil sair da condição arriscada em que vivemos, a maioria de nós acredita que cedo ou tarde estaremos novamente nos abraçando e comemorando entusiasticamente a vitória sobre o vírus. De minha parte, algo egoisticamente, espero que depois de vencida essa crise possamos continuar a debater e divergir sobre esses temas complexos que a epidemia nos legará. No momento, estamos como filósofos convocados a dar contribuições positivas para os problemas que estamos vivenciando. A crise nos aproximou de uma forma inesperada. Filósofos são animais gregários, dificilmente trabalham em grupo. Mas a pandemia nos exortou a pensar em conjunto sobre esses temas. Veja o exemplo do trabalho que fizemos nós quatro, eu, Darlei, Alcino e Marcelo. Em situações normais estaríamos pensando em como nos diferenciar. Em filosofia nos acostumamos a divergir, confiantes de que a divergência estimula a criatividade e o progresso do pensamento crítico. Todavia, há momentos em que precisamos buscar convergências para atingir objetivos mais práticos. Este é um momento para unidade e proximidade. Ao sairmos dele, tenho certeza que enxergaremos nossas diferenças de uma forma muito mais salutar e solidária. Isso se aplica também a outros domínios, como a política. O mundo está convergindo no combate à pandemia. Espero que o Brasil entenda isso. Quanto aqueles que não compreenderam, talvez o melhor seja não dar-lhes tanta importância. Pois, como disse o poeta, “eles passarão…” e nós, “passarinho!”


*Felipe é jornalista e estudante de Medicina na UFRGS. Você pode contatá-lo pelo [email protected]

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