Entrevista | Forma e Função

Ivan Mizoguchi: a cidade como construção coletiva

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Ivan Mizoguchi: a cidade como construção coletiva Ivan Mizoguchi (Foto: Arquivo pessoal)

Há 45 anos, em agosto de 1977, iniciavam as obras de um dos maiores emblemas da capital gaúcha: o Parque Marinha do Brasil. Construído sobre o aterro da Praia de Belas, o símbolo de convivência e harmonia com a natureza foi obra de uma equipe liderada por dois arquitetos: Ivan Mizoguchi e Rogério Malinsky.


Além de arquiteto, Mizoguchi também é professor aposentado da UFRGS, ex-presidente do IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil) no RS — e atual representante gaúcho no Conselho Superior dessa entidade — e ex-diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUCRS. Hoje, a orla do Guaíba é objeto de vários outros projetos arquitetônicos e, por consequência, alvo de polêmicas diversas sobre os caminhos que devem ser tomados para que esse espaço seja de convívio da cidade.

Nesta entrevista, Mizoguchi revisita a sua história como arquiteto do parque, sugere como os novos projetos podem ser construídos de acordo com a topografia e a harmonia de Porto Alegre e pondera: para além das necessidades do mercado, a cidade é uma construção coletiva.


Parêntese – Entre os projetos para o aterro do Praia de Belas, havia um conjunto de prédios administrativos, mas venceu o projeto do Parque Marinha do Brasil, que hoje é um grande símbolo da capital. Como foi construído o projeto e como o senhor vê hoje o parque?

Ivan – Sim, é verdade! Planos urbanísticos históricos já previam, para o aterro Praia de Belas centros administrativos, um campus para a UFRGS, um centro esportivo estadual, quadras de habitações coletivas e unifamiliares e até mesmo um belo balneário. Fica claro que a maior parte desses planos não vingou.

É bom sempre lembrar que, como o nome está dizendo, toda essa gleba foi fruto de aterros, de áreas tomadas ao rio. O limite natural junto ao rio era a avenida Praia de Belas. Esse limite acabou avançando centenas de metros.

Nos anos 1970, o BNH – Banco Nacional da Habitação, extinto há muito tempo e que era o órgão financiador imobiliário do governo federal, dispôs recursos às prefeituras do país que desejassem fazer melhoramentos e renovações em áreas urbanas, através do programa denominado Projeto CURA, ou Comunidade Urbana de Renovação Acelerada. Os exemplos de projetos CURA mais dignos desenvolvidos na ocasião no país, pelo menos para os arquitetos, foram o Projeto Renascença, em Porto Alegre, e o Projeto Alagados, em Salvador, na Bahia.

A prefeitura de Porto Alegre incluiu, no Projeto Renascença, o Parque Marinha do Brasil (então um aterro arenoso e desértico); as avenidas Érico Veríssimo, Beira-Rio (atual Edvaldo Paiva) e Ipiranga, em parte; o Centro Municipal de Cultura Lupicínio Rodrigues; o loteamento da antiga área da Ilhota e redes de infraestrutura para toda a área abrangida, entre outros.

O Parque Marinha do Brasil foi objeto de um concurso público organizado pela prefeitura municipal de Porto Alegre, em 1976. A equipe multidisciplinar, coordenada por mim e por Rogério Malinsky, arquitetos, venceu o concurso e foi contratada para desenvolver o projeto executivo total do parque.

Daquele terreno arenoso e baldio floresceu, através dos anos, o Parque Marinha do Brasil, com 72 hectares. Milhares de mudas de árvores e grandes extensões de gramados foram plantados – havia uma tremenda expectativa se a vegetação se adaptaria ao local – e, equipamentos esportivos, recreativos, edificações variadas foram sendo implantadas. As grandes virtudes que apontamos na época para o parque – e que permanecem – eram sua localização junto à uma das grandes belezas da cidade, o rio Guaíba; estar próximo ao centro de Porto Alegre; sua acessibilidade e, mais que tudo, por ser um parque público! Tomara que permaneça assim!

Do projeto original, foram implantados cerca de 60%. Muita coisa importante e significativa deixou de ser executada. Por exemplo, aquilo que chamamos de Portinho: uma extensão do parque que adentrava ao rio, com bares, restaurantes, museus aquáticos, anfiteatros, ancoradouros para barcos de passeios e de transporte público estavam lá, simbolizando uma retomada do rio por seu habitante, pela comunidade. Isso porque, na época, começavam a crescer os problemas de poluição dos rios, a privatização da orla, coisas que impediam o porto-alegrense de usufruir plenamente do seu grande companheiro – o rio Guaíba.

Apesar de tudo, apesar de inconcluso, vejo o parque como uma conquista da cidade. Quando vejo todo aquele pessoal correndo, caminhando, fazendo piquenique, tomando chimarrão em rodas de amigos, jogando futebol, vôlei, pandorga com filhos e netos, namorando, passeando com os cães, sinto uma felicidade muito grande por ter sido um dos autores do seu projeto.

Parêntese – Qual é a sua opinião sobre o projeto da nova Orla do Guaíba? Na sua opinião, ela valoriza mais o parque ou poderia ser melhor?

Ivan – O projeto da Nova Orla foi feito por pessoal competente. Jaime Lerner (falecido recentemente) e equipe tem experiência internacional. É só ver a quantidade de pessoas utilizando os equipamentos e espaços projetados recentemente, dá para ver que eles foram bem aceitos. Tudo isso valoriza o parque. Se forem destinadas a uso eminentemente público, vou apoiar essas ideias. 

No entanto, tenho que considerar duas questões: a primeira se refere ao projeto original. Nossa equipe tinha incluído no projeto original do parque equipamentos, áreas e espaços para o trecho do Parque Marinha que vai da Edvaldo Paiva até a margem do rio. Se era para fazer um novo projeto, gostaríamos muito de poder recuperar algumas ideias originais, como dos equipamentos à beira d’água, assim como poder fazer uma retomada completa do nosso projeto para esta área. Nosso projeto, vencedor do concurso original, é mais do que credencial para tanto.

A segunda questão se refere a um retorno às origens do projeto do parque. Se era para fazer um projeto novo, por que não repetir o procedimento anterior, ou seja, um concurso público? Acho que os arquitetos em geral teriam uma gama muito fértil, inovadora e rica de ideias a serem ofertadas à população.

Parêntese – Vários projetos recentes, como o parque da Orla, o pontal do Estaleiro e as possíveis torres do terreno do Beira-Rio, aumentam a quantidade de edificações e a altura delas. Como o senhor vê essa possibilidade de construir prédios maiores no aterro?

Ivan – Não vou me deter em examinar edificação por edificação. Quero abordar esta questão de outra forma. Os problemas que possam haver nos projetos em si já foram objeto de análise. Penso o mesmo que um arquiteto admirável, um amigo, o maior arquiteto brasileiro contemporâneo, infelizmente falecido há pouco: Paulo Mendes da Rocha. Dizia ele: não temos sabido projetar nossas cidades. Concordo!

Para examinar esta questão, vou recorrer mais uma vez a um exemplo concreto. A cidade é uma construção coletiva! Apesar das diferenças sociais e econômicas flagrantes — que sempre existiram, e que a pandemia acentuou — de uns mandarem mais do que outros, de uns se sentirem mais privilegiados de um jeito ou de outro, na história das cidades, a participação coletiva em seu planejamento e na sua construção foi um fato. Também é um fato que qualquer edifício é parte da cidade, portanto, tem o compromisso primordial de ajudar a melhorar o ambiente e a paisagem urbana. Nem sempre é assim! 

Sobre isso, há um livro do famoso arquiteto italiano Aldo Rossi, chamado Arquitetura da Cidade, e o nome diz muito. Vamos ao meu exemplo, um exemplo estrangeiro para permitir uma análise mais distanciada. Que belas e felizes ideias tiveram os planejadores, os administradores, os arquitetos e a população da cidade de São Francisco da Califórnia quando, planejando o seu desenvolvimento urbano, decidiram que aquela bela paisagem constituída pelas colinas – as hills – pela bela baía, pela vista de Alcatraz e pelo agitado Fisherman’s Wharf (Cais do Pescador), pelos contornos ondulados dos montes das redondezas teriam que ter — para sempre! — asseguradas sua morfologia natural e acessibilidade franca à população. E que, para tanto, nas encostas das hills, as casas, que chamam de vitorianas, não poderiam ser altas, simplesmente para que os de trás pudessem também usufruir da bela vista e que a salutar brisa do mar não fosse impedida de circular. Paisagem, conforto ambiental, espírito comunitário são do que estamos falando. 

Como não eram — assim como também não o sou —, contra os grandes edifícios, desde que sejam bem planejados, aqueles de São Francisco destinaram as áreas centrais, as áreas dos grandes negócios, das atividades e serviços — e apenas lá —, para as grandes construções. Foi nesse sentido que penso que todo o edifício projetado na nossa cidade tem que atender: uma visão integradora e comunitária. 

E vamos combinar, é bem provável que os Casais Açorianos que aqui chegaram por volta de 1750 escolheram este nosso sítio muito em função das belezas naturais. Um rio maravilhoso e encantador, um delta espetacular, um conjunto de morros e colinas acolhedores e lindos. Olhem as gravuras antigas que registram essas paisagens! 

Lamentavelmente nossa cidade se desenvolve sem levar muito em conta esse espetáculo, essa dádiva da natureza. Já não se nota que isso tudo um dia existiu. Pouco vem se considerando a história e o patrimônio cultural ao se planejar a cidade, diferentemente do que fazem em muitas belas e acolhedoras cidades europeias.

Quanto aos edifícios na orla, penso que, se essa paisagem natural é excepcional, se as vistas de perto ou de longe são magníficas, se o conforto ambiental que pode ser propiciado por essa natureza é a boa insolação, são os ventos saudáveis, não tem por que tudo isso possa ser exclusivamente de poucos. É por tudo isso que usei o exemplo de São Francisco. Porque lá há uma lei, um plano diretor respeitado e sólido. É por todos estes motivos que acredito que, para as cidades deve haver uma lei, uma lei íntegra que defina o seu planejamento, o seu plano diretor. E que planejamentos parciais ou propostas fragmentadas de intervenções urbanas em nada contribuem para a melhoria da cidade. Ah! E não podemos nunca deixar de batalhar por diminuir as imensas, inaceitáveis e injustas desigualdades que constatamos nas cidades. Se quisermos encontrar um pouco de paz, de tranquilidade na vida urbana, teremos que ao menos atenuar esses problemas. Enquanto houver diferenças e desigualdades tão cruéis, haverá conflitos, lutas e violências urbanas.

Parêntese – Na sua opinião, qual seria a melhor forma de aproveitar o espaço da orla?

Ivan – Como um belo, aprazível, agitado, contínuo e bem equipado parque público. Como são os bem projetados parque do aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, ou o parque urbano na beira do rio Garonne em Bordeaux, França. Entre outros tantos exemplos.

Parêntese – Lendo o seu livro sobre “A Formação do Arquiteto”, publicado em 2015, percebo que havia uma ideia de levar o profissional de arquitetura em formação a ter uma visão mais holística e menos técnica dos profissionais. Desde então, vimos um enorme déficit em educação, proporcionado pela falta de investimentos públicos, e que deve se agravar com a pandemia. Na sua opinião, o que um futuro arquiteto deveria priorizar na sua formação?

Ivan – É claro que um futuro arquiteto tem que se dedicar ao máximo, entre outras disciplinas, ao aprendizado dos projetos. Seja em que escala for. Tudo começa na casa, passa pela rua, pelas praças e parques, pelos bairros, pela cidade, enfim… Dominar os métodos de projeto, dominar as técnicas de construir, dominar os meios de expressão e ser muito criativo são obrigações do futuro arquiteto. Mas não poderá esquecer ou recusar nunca de estudar a Natureza, a História, a Estética e os processos sociais.

Parêntese – Estendendo um pouco mais a pergunta acima, o que as universidades deveriam priorizar para formar melhores arquitetos?

Ivan – Penso que tudo começa pela valorização do professor. Me refiro aos honorários e ao papel, que deve ser de protagonista do ensino. Assim o fizeram alguns países que consideraram a educação como elemento básico para alavancar o seu desenvolvimento, como a Coréia do Sul, o Japão, os países nórdicos etc. Pagar bem, preparar bem, dar apoio logístico adequado e assim, poder cobrar um bom ensino.

Mas não posso evitar, nesse momento em que tanto se discutem as “novas tecnologias” ligadas ao ensino, leia-se EAD, que há um fenômeno, ou mecanismo psíquico, não sei ao certo, que é próprio do ser humano. Trata-se do “processo de identificação”. 

Quando duas ou mais pessoas interagem, principalmente em situações de dependência como a do professor x aluno, o aluno, inconscientemente, deseja, quer “tomar do outro”, quer para si, se “tornar dono” de tudo aquilo que considera (no professor) boas qualidades e virtudes: estas podem ser o conhecimento, a postura ética, a forma de agir, de trabalhar etc. Esta é uma das mais sublimes formas de ensino x aprendizado. Vê-se que a relação presencial professor x aluno é essencial nos processos de ensino-aprendizagem. 

Tudo isso, insisto – que é da essência do aprendizado, que ajuda a formar a personalidade profissional de alguém – só é possível em relações interpessoais presenciais. Dificilmente irá ocorrer em formas de ensino à distância, frias, mecanicistas e tecnicistas! 

Longe de mim estar com isso desconsiderando, ou diminuindo, a importância dos espaços, dos métodos, dos currículos, dos locais de estudo e de convivência tão importantes à formação profissional.

Outra coisa: é urgente que as escolas contratem como docentes também profissionais com larga experiência no dia a dia da profissão. Há muito tempo eles estão apartados do ensino. A mistura da academia com a prancheta na docência é fundamental.

Parêntese – As políticas públicas, em Porto Alegre, são bastante orientadas para o mercado: mais prédios, mais lucros para as incorporadoras, em uma situação de crise econômica generalizada que pouco afetou as famílias mais ricas. Em entrevista com Sérgio Marques, ele opinou que, para ele, é importante que o poder público tenha uma “mão forte”, do ponto de vista técnico, para não prejudicar o desenvolvimento das cidades. Concorda com ele? Qual a sua opinião sobre isso?

Ivan – Concordo que o papel dos técnicos no planejamento é importante. Porém, como defendi antes, que a cidade seja uma construção coletiva, não posso deixar de mencionar que instrumentos legais que garantam a efetiva participação da população no planejamento da cidade também são, não apenas muito importantes, como decisivos.

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