Filosofia na vida real

Até que a imaginação os separe – Cena 9

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Até que a imaginação os separe – Cena 9 Iracema, de José de Alencar Sabia que estava arrumando sarna pra me coçar quando coloquei Iracema na lista dos textos-alvo da série Até que a imaginação os separe. É no mínimo temeroso deitar opinião sobre um romance tão intensa e detalhadamente vasculhado por nomes como Afrânio Peixoto, Alfredo Bosi, Haroldo de Campos, David Treece, Doris Sommer e Renato Janine Ribeiro. Só pra mencionar alguns poucos e bons. Até Machado de Assis meteu a colher no casamento de Iracema e Martim Soares Moreno tão logo o livro foi publicado. Com que roupa eu vou pra um casamento tão bem frequentado? O negócio é começar calçando as sandálias da humildade e tentar não fazer feio na escolha da casaca do ensaio. É fácil explicar esta atenção aquilatada que o romance ainda desperta, passados estes especialmente tumultuados anos do recente século e meio. Não seria um exagero sugerir que Iracema retrata o enlace matrimonial mais densamente carregado de simbolismos e alegorias da literatura nacional. Para as representações do casamento na literatura ficcional brasileira estamos às voltas com o que se costuma chamar de um clássico.  Algumas das hipóteses de interpretação sugeridas por este fino rol de analistas são igualmente atinadas. Temos a clássica conjectura anagramática entre “Iracema” e “América”, que nos convida a imaginar o casamento com Martim como uma espécie de repactuação política continental em que os invasores de além-mar furtivamente colocam no bolso colonial da propriedade tudo o que era posse originária ameríndia. A morte de Iracema é um dos condicionantes para que esta transformação de posse autóctone em propriedade colonial possa operar e, posteriormente, ser transmitida para Moacir, o filho mestiço e começo de um novo povo.   Temos a perseguição romântica, mata adentro, litoral afora, para fundar nossa identidade nacional na combinação interracial entre brancos e índios. E como toda corrida para descortinar mitos de origem e escarafunchar raízes deixa alguém pelo caminho, desta feita os negros, mesmo sustentando as engrenagens econômicas do Segundo Reinado, ficam, estrategicamente, de fora da equação da cena originária.  Temos as vinculações entre Iracema e a Eva do Gênesis, a “Eva indiana” na expressão de Machado de Assis, o que projeta a figura da vestal que guarda os mistérios da tribo, sua trágica união com Martim, bem como a concepção e nascimento de Moacir, para as dimensões pré e pós-lapsárias do Novo Éden na América. Esta peculiar tara europeia que tensionou o surgimento dos humanismos e renascenças daquela outra margem do Atlântico. Em festa de gente bacana não convém contrariar os convidados. Razão pela qual abraço de bom grado essas vias convergentes de leitura e interpretação e, escapando de fininho do salão de espelhos do convescote dos críticos na direção da cozinha das obviedades comezinhas, me permitam lembrá-los que o casamento pode servir com estratégia de coesão social entre grupos, em particular o casamento exogâmico, do qual a união interracial é um caso. É na direção de alguns aspectos do casamento interracial em Iracema que enveredo os bacorejos seguintes. Para me cercar de gente graúda, dá […]

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Iracema, de José de Alencar Sabia que estava arrumando sarna pra me coçar quando coloquei Iracema na lista dos textos-alvo da série Até que a imaginação os separe. É no mínimo temeroso deitar opinião sobre um romance tão intensa e detalhadamente vasculhado por nomes como Afrânio Peixoto, Alfredo Bosi, Haroldo de Campos, David Treece, Doris Sommer e Renato Janine Ribeiro. Só pra mencionar alguns poucos e bons. Até Machado de Assis meteu a colher no casamento de Iracema e Martim Soares Moreno tão logo o livro foi publicado. Com que roupa eu vou pra um casamento tão bem frequentado? O negócio é começar calçando as sandálias da humildade e tentar não fazer feio na escolha da casaca do ensaio. É fácil explicar esta atenção aquilatada que o romance ainda desperta, passados estes especialmente tumultuados anos do recente século e meio. Não seria um exagero sugerir que Iracema retrata o enlace matrimonial mais densamente carregado de simbolismos e alegorias da literatura nacional. Para as representações do casamento na literatura ficcional brasileira estamos às voltas com o que se costuma chamar de um clássico.  Algumas das hipóteses de interpretação sugeridas por este fino rol de analistas são igualmente atinadas. Temos a clássica conjectura anagramática entre “Iracema” e “América”, que nos convida a imaginar o casamento com Martim como uma espécie de repactuação política continental em que os invasores de além-mar furtivamente colocam no bolso colonial da propriedade tudo o que era posse originária ameríndia. A morte de Iracema é um dos condicionantes para que esta transformação de posse autóctone em propriedade colonial possa operar e, posteriormente, ser transmitida para Moacir, o filho mestiço e começo de um novo povo.   Temos a perseguição romântica, mata adentro, litoral afora, para fundar nossa identidade nacional na combinação interracial entre brancos e índios. E como toda corrida para descortinar mitos de origem e escarafunchar raízes deixa alguém pelo caminho, desta feita os negros, mesmo sustentando as engrenagens econômicas do Segundo Reinado, ficam, estrategicamente, de fora da equação da cena originária.  Temos as vinculações entre Iracema e a Eva do Gênesis, a “Eva indiana” na expressão de Machado de Assis, o que projeta a figura da vestal que guarda os mistérios da tribo, sua trágica união com Martim, bem como a concepção e nascimento de Moacir, para as dimensões pré e pós-lapsárias do Novo Éden na América. Esta peculiar tara europeia que tensionou o surgimento dos humanismos e renascenças daquela outra margem do Atlântico. Em festa de gente bacana não convém contrariar os convidados. Razão pela qual abraço de bom grado essas vias convergentes de leitura e interpretação e, escapando de fininho do salão de espelhos do convescote dos críticos na direção da cozinha das obviedades comezinhas, me permitam lembrá-los que o casamento pode servir com estratégia de coesão social entre grupos, em particular o casamento exogâmico, do qual a união interracial é um caso. É na direção de alguns aspectos do casamento interracial em Iracema que enveredo os bacorejos seguintes. Para me cercar de gente graúda, dá […]

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