Memória

Fragmentos de memórias

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Fragmentos de memórias Aldir Martins Jardim e sua filha Rejane. Foto: Arquivo pessoal

É difícil contar a história de uma pessoa, ou um trecho que seja, quando ela já não está entre nós há quase meio século. Também atrapalha se sua parceira igualmente se foi, mesmo que recentemente. A situação se complica se a família não teve o hábito de preservar a memória. Aí, só restam fragmentos. Uns aqui, ouvidas em casa. Outros ali, com tios e primos.

E é a partir desses retalhos que tento remontar a vida de Aldir Martins Jardim. Meu pai. Servidor público que, durante a ditadura, teve sua ficha manchada por uma acusação de corrupção e acabou morrendo precocemente, aos 42 anos. De desgosto e de tuberculose.

De desgosto porque tinha sua ética, um modo pelo qual achava correto de viver. E a corrupção não fazia parte dela.

Convivi pouco com ele. Cerca de nove anos. E, acredito que devido a esse episódio, o via quase sempre muito calado. Às vezes deitado a cama, pensativo. Outras com os filhos em volta, contando histórias de sua juventude.

Lembro de uma com clareza. O pai dele, vô João, que não conheci, levava os filhos pequenos a comícios do PCB em Uruguaiana, então ilegal. Numa dessas vezes, na qual estava presente Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, a polícia apareceu. E o João colocou um filho na cacunda e outros dois, seu Aldir, entre eles, embaixo de cada braço e fugiu correndo do alto dos seus mais de 1m90.

O Chinha, apelido de infância do pai, se orgulhava dessa aventura. Por isso, sempre achei que tenha sido um homem de esquerda. Mesmo que não fosse politicamente engajado no seu cotidiano. Que pensava à esquerda, isso não tenho dúvidas.

Outra história, que reforça essa impressão, quem lembrava era a mãe, dona Sueli. O ano era 1961. Os dois estavam casados há um ano e recém tinham tido minha irmã. Pois, em agosto, o pai deixou as duas em casa em se tocou para o Palácio Piratini, com dois punhados de bolinhas de gude nos bolsos, como outras centenas de porto-alegrenses, para defender a Legalidade ao lado de Leonel Brizola.

Ainda na década de 1960, seu Aldir e um dos seus irmãos, o Oly, entraram para o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra), transformado em Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 1970. Eles já estavam em seus cargos quando veio o golpe que derrubou João Goulart em 1º de abril.

Alguns anos depois de 1964, tio Oly passou uma noite fora de casa. No dia seguinte, ao chegar ficou-se sabendo que ele havia sido detido por engano pelo Dops. Mesmo assim, estava todo lanhado.

Ninguém sabe ao certo se foi esse episódio, ou uma possível filiação dos dois à UGES no tempo em que eram estudantes, mas algo aconteceu que fez com que o chefe deles no Incra arranjasse uma transferência dupla. Eles nunca comentaram o fato com profundidade.

Ambos fariam parte da equipe das obras da faraônica – e nunca acabada – Transamazônica, que levaria desenvolvimento à região Floresta Amazônica. Tio Oly, junto com sua família, foi para Salvador, sede administrativa do projeto. O Chinha, dona Sueli e seus quatro filhos, para Belém, sede operacional.

Claro que não lembro, mas os relatos da mãe e irmãos recordam que nos mudamos, no entanto, pouco depois da conquista da Copa do Mundo de 1970. Os jogos do Brasil, aliás, foram assistidos por vizinhos e parentes na nossa casa, uma das poucas com TV, ainda PB, em uma das ruas da Vila Jardim. Ficamos na capital paraense até 1974. 

Enfim, por lá, o pai ficou responsável pelo almoxarifado da Transamazônica. Um estoque enorme, considerado um dos maiores da América Latina na época. Cuidava desde coisas simples, como um clipe, até equipamentos caríssimos, como pequenas aeronaves e tratores. Faltava alguma coisa, era ela quem mandava comprar. 

Por lá, vale recordar, o pai fez grande amizade com um colega, conhecido como Baby. Ele frequentava nossa casa. Ensinou minha irmã o pouco que ela sempre soube de violão.

Era um boa praça, pelo que dizem meus irmãos. Certa vez, Baby sumiu. Não aparecia no trabalho. Não era mais visto na rua onde morava. Um dia, o China confidenciou à família, o corpo do amigo havia aparecido na zona rural de Belém, com um tiro na cabeça. O pai suspeitava que ele havia sido vítima dos milicos.

Bom, voltando ao trabalho do seu Aldir, como cuidava das compras do almoxarifado, ele era o cara a ser corrompido em uma enorme obra pública. Sendo assim, um final de tarde, depois do expediente, recebemos a visita de um engravatado. E ele, funcionário de uma multinacional que fornecia algum tipo de equipamento, vinha propor uma negociata por baixo dos panos. 

Acabou expulso aos safanões. Ético e correto como era, o Chinha não aceitava esse tipo de situação. Tempos depois, porém, acabou acusado de desviar material do setor em que trabalhava. O chefe dele ordenava a liberação de estoque sem nenhuma burocracia. Com a descoberta, acusaram apenas seu Aldir. O superior, com ligação direta ao regime, seguiu no cargo. Sem nada lhe acontecer.

O Chinha foi “rebaixado”. Depois afastado. Depois, tivemos uma passagem rápida por Curitiba, até voltarmos para Porto Alegre em 1975. Então, o pai saiu em licença saúde, devido a tuberculose. Daí, veio uma aposentadoria precoce pelo mesmo motivo. 

Passou o restante dos seus dias remoendo o desgosto de ser chamado ladrão e corrupto sem o ser, em meio a uma forte depressão (acredito que era, já que, na época, esse diagnóstico quase não existia) e à doença nos pulmões. Morreu em julho de 1979, ao dar entrada no hospital com hemoptise. 

Só foi “inocentado”, por meio de uma carta fria e burocrática, depois do seu falecimento. Sem nenhuma justificativa, o documento impessoal e distante veio pelos Correios e dizia apenas que sua ficha estava “limpa”. Recebido pela dona Sueli, ele se perdeu com o tempo. Ou nas muitas mudanças que tivemos. 

Nunca procuramos uma reparação. Talvez porque nunca tenhamos sido orientados a isso. Ou porque a carta havia chegado tarde demais. Talvez, também, porque nenhum dinheiro traria o velho, nem tão velho assim, Chinha de volta à convivência familiar. 


Roberto Jardim, jornalista desde 1996, pesquisa e produz reportagens independentes misturando futebol, política e história publicadas em portais como Medium, Puntero Izquierdo e Ludopédio. É autor de dois livros Além das 4 Linhas (Vento Norte Cartonero, 2016) e Democracia Fútbol Club e outras histórias (edição do autor, 2018). Contato: [email protected].

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