Foi lá por 1983 que a gente começou a ter um exacerbado orgulho de viver no mesmo tempo e espaço do Nelson.
“Todo mundo” pensava isso.
Todo mundo que eu conhecia, claro.
Nelson Carlos Coelho de Castro tinha então 29 anos. Nascera em Porto Alegre, dia 17 de abril de 1954, e estreara oficialmente aos 21, em 1975.
Músico porto-alegrense estreando em 1975 não é difícil deduzir onde. Claro: nas Rodas de Som armadas por Carlinhos Hartlieb no Teatro de Arena.
Só que, antes disso, ele já tinha cantado até no programa da Hebe Camargo. Tudo bem, como integrante do coral infantil Canarinhos do Colégio São João.
Mas tinha.
O coro gravara dois discos e fizera apresentações em Buenos Aires, Rio e São Paulo, tudo ainda na década de 1960, antes dos Coelho de Castro mudarem-se pra Curitiba, só voltando pra Porto Alegre em 1971.
O próprio Nelson conta, no livro Continental, a Rádio Rebelde de Roberto Marinho, de Lucio Haeser:
Ele já tocava um pouco de violão e compunha algumas coisas quando foi parar no conservatório Palestrina. Ali, estudaria com o mestre Ivaldo Roque, um craque do samba e da MPB, parceiro de Jerônimo Jardim no precursor grupo Pentagrama. Ali forjaria sua persona musical.
No tempo das Rodas de Som estava estudando jornalismo na Famecos (Faculdade de Meios de Comunicação Social) da PUC. Mesma PUC que promovia os festivais Musipuc, fundamentais para o desenvolvimento de toda essa geração de músicos e compositores. Com o grupo Olho da Rua (superamador, segundo o próprio), Nelson participou das edições de 1976 e 77. Dominadas pelo talento de Fernando Ribeiro, que ganhava sempre. Esse seria outra figura importante na formação do rapaz.
Pra completar o circuito musical meados-de-anos-70-em-Porto-Alegre, ainda faltam os míticos concertos Vivendo a Vida de Lee. Pois ele também fez bonito em uma das duas noites do último que aconteceu, em dezembro de 1976.
Há um testemunho de época. Está no jornal manuscrito de exemplar único (!!!) O Portão, feito pelo então adolescente Breno Serafini:
Em 1977 conclui o curso e vai trabalhar como produtor da apresentadora Tânia Carvalho na TV Difusora. No mesmo ano, o Musipuc resolve criar uma categoria especial só pra poder premiá-lo: a de Canção Mais Original. Afinal, ninguém sabia o que fazer com aquele esquisitíssimo samba chamado Futebol – que o próprio Nelson só lançaria em disco 25 anos depois:
Tinha 23 anos. Já era inconfundível.
Rodas de Som, Musipuc, Vivendo a Vida de Lee, agora uma última coisinha…
…tocar na Rádio Continental do mesmo Julio Fürst que promovera os Vivendo a Vida de Lee.
Pois logo depois do prêmio de Futebol, ele é chamado pra gravar, no estúdio da rádio, duas canções: essa e Magricela. Ambas entram na programação da emissora, junto com outros músicos bacanas da cidade, que rodavam na rádio com mais audiência entre a juventude setentona porto-alegrense.
E aí o show de estreia, nesse mesmo 1977.
O espetáculo se chamava …E o Crocodilo Chorou, e teve a mão fundamental de duas figuras essenciais na carreira do mesmo Fernando Ribeiro hour concours do Musipuc: o diretor teatral Luciano Alabarse e a produtora Dedé Ribeiro, cara-metade e eventual letrista de Fernando.
Na verdade, os dois praticamente obrigaram Nelson a fazer o show. Na marra.
(O filme era dirigido por seu eterno parceiro Luiz Antônio Catafesto.)
No ano seguinte, novo show, com o título auto-explicativo de… Milagrezinho. E Bebeto Alves no posto de guitar hero da banda.
Nelson e Bebeto que seriam dois dos destaques do fundador LP Paralelo 30, lançado naquele 1978 pela gravadora local ISAEC. São dele duas das canções mais originais do disco. A épica Rasa Calamidade. E Águias:
Já Rasa Calamidade falava da Vila Cruzeiro do Sul, que fica atrás do Morro de Santa Teresa, onde estão as emissoras de TV de Porto Alegre:
Num ritmo indefinido e indefinível, de compassos imensuráveis, a canção soa cercada de ruídos de latas que parecem tiros, e gravações de guitarras tocadas de trás pra frente. Em cima disso, Nelson rosna versos quase punks, que deixavam muito longe a idealização carioca da vida do morro e prenunciavam a crua visão da realidade que seria aceita só a partir dos anos de 1990, no rap. A poética peculiar apontava para as vidas que eram vividas longe do olhar classe média dos compositores da sua Porto Alegre:
(A gente poderia falar longas páginas sobre o Paralelo 30, mas fica pra outra hora.)
No ano seguinte, 1979, ele finalmente estreia solo em disco. Tarefa nada fácil naqueles anos, o primeiro lançamento é um compacto simples, com duas músicas, pela mesma ISAEC do Paralelo 30.
No Lado B, a “latino-americana” Hei de Ver – parceria com mais um membro da turma de Fernando Ribeiro: o seu letrista Arnaldo Sisson.
Mas o que impactou no disquinho foi seu Lado A. Nele está Faz a Cabeça, o primeiro sucesso de Nelson, não por acaso um samba.
Curiosidade total um rapaz branco de classe média, de Porto Alegre, 25 anos, poder ser chamado de… sambista.
Os Almôndegas Kledir Ramil (então com 28 anos) e Pery Souza (26), Fernando Ribeiro (30), Raul Ellwanger (32), ou a dupla Jerônimo Jardim (35) e Ivaldo Roque (40) fizeram sambas antes dele.
Só que dentro de uma sonoridade bem inspirada na MPB da década daquele momento.
Nelson era diferente.
O samba naquele disquinho era muito mais raiz, samba de botequim (explicitado na gravação pelo coro de ´pastoras´ e a percussão feita em copos, garrafas, bandejas e caixinhas de fósforo). Mais pra Paulinho da Viola, Elton Medeiros ou João Bosco/Aldir Blanc do que pra Chico ou Caetano. E isso era muito novo, justamente porque ignorava o samba sofisticado dos compositores de classe média da década de 1970 para se conectar com o samba de morro e botequins de 20 anos antes. O único paralelo possível então seria a dupla João Bosco e Aldir Blanc.
E como no caso deles, o choque entre o tradicional e o novo vinha na letra. Faz a Cabeça era uma ode à volta de Leonel Brizola, então retornando do exílio, no início do processo de Abertura Democrática. E aí a gente pode pegar, sobre o mesmo tema, a mais célebre canção sobre a volta dos exilados: a barroca (e maravilhosa) O Bêbado e a Equilibrista, de… João Bosco e Aldir Blanc.
Nada mais distante de Faz a Cabeça.
Enquanto uma é toda lirismo, Nelson é cru, e com uma linguagem nada “sambística”. Pra complicar, o conteúdo do que ele canta não tem um pingo de romantismo com relação aos exilados que voltam.
O resultado é de um estranhamento ímpar, onde já se começa com os dois pés atrás com a euforia do momento (e a música, eufórica, joga com essa contradição isso).
O momento era de que tudo o que se precisava era saber era que se tinha razão. E que, a partir dali, o Brasil ia melhorar. Não era o que Nelson achava:
Toma cuidado com a folia da situação.
É um tabefe, já no refrão.
E segue:
E aí se subverte a subversão dos que se foram – enquanto outros morriam por aqui, pelas mesmas causas. Pior: parece que a vinda dos anistiados, diz a canção, não vai mudar é nada.
Quem nunca foi pelego não precisa de um mestre iluminado:
Estória que ele vai vim, vai tremer com os boneco daqui… Nós não somo pelego e nem cheremo a jasmim!
(Vê só o fedor se diz que faz…)
De qualquer forma, se for para o bem de todos…
E aí, ai do Brizola se sua volta tiver significado uma dobrada de espinha:
Bã.
Naquele momento em que se acreditava que uma dor assim pungente não haveria de ser inutilmente, Faz a Cabeça é, em bom gauchês, um pataço (pataço mais forte ainda quando se percebe que, apesar de termos feito tudo o que fizemos, taí o resultado…)
Só pra aliviar, o time que se reúne à volta fictícia mesa de boteco na gravação é um resumo da sua turma naquela virada de década. Entre outros, os já citados Jerônimo Jardim, Fernando Ribeiro e Bebeto Alves, mais a cantora Loma, o baixista Tenison Ramos, o percussionista De Santana, o baterista Bebeto Mohr (tocando garrafa) e o violonista Toneco. Na maioria, figurinhas carimbadas dos shows de Fernando ou do já finado Grupo Pentagrama.
Dando-se conta ou não do conteúdo subreptício do samba de Nelson, muita gente o cantou. E ficou curioso com aquele sujeito.
Até um documentário em média metragem apareceu, dirigido por Nelson Nadotti, com argumento de, entre outros, o futuro ícone punk Wander Wildner. Se chama A Música de Nelson Coelho de Castro e está no Vimeo.
Foi então que o carinha resolveu reunir a turma e peitar uma aventura inédita no Estado – e que começava a engatinhar no País.
O disco independente.
Mas aí já é outra história.
Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (15 discos, meia centena de trilhas) e doutorando em literatura brasileira na UFRGS por puro amor desinteressado. Publicou Elis, uma biografia musical (Arquipélago, 2015).