Manifesto | Memória

Manifesto em defesa da memória social e do direito à cidade nas antigas regiões industriais de Porto Alegre (3º e 4º Distritos)

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Manifesto em defesa da memória social e do direito à cidade nas antigas regiões industriais de Porto Alegre (3º e 4º Distritos) Centro Cultural Vila Flores. Foto: Julio Ferreira/PMPA

 Manifesto em defesa da memória social e do direito à cidade nas antigas regiões industriais de Porto Alegre (3º e 4º Distritos)

No dia 12 de dezembro de 2023, mais de cinquenta pessoas se reuniram no Centro Cultural Vila Flores para avaliar os problemas e pensar soluções para o território que abrigou as antigas regiões industriais da cidade, que estavam localizadas no 3º e 4º Distritos de Porto Alegre. A partir dos debates realizados, do diálogo com a comunidade e do trabalho de pesquisadores e pesquisadoras nucleados na Faculdade de Arquitetura da UFRGS, foi elaborado este “Manifesto em defesa da memória social e do direito à cidade nas antigas regiões industriais de Porto Alegre (3º e 4º Distritos)”. Convidamos todas as pessoas a ler, discutir, divulgar e assinar este manifesto, para que ele se torne também um instrumento que ajude a questionar o presente e propor soluções para o futuro de nossa cidade.

Clica aqui para assinar.


A evolução de uma cidade é – ou deveria ser – um processo longo e de contínua construção. Esse processo não envolve apenas técnicos, mas toda sociedade na medida em que não apenas o planejamento urbano importa, como também a compreensão e a aceitação de que um modelo de cidade é um direito e um dever democrático de todos nós enquanto cidadãos. 

São poucas as cidades que já nascem prontas. Porto Alegre não é uma delas! Seus 251 anos de história são resultado de um processo amplo e coletivo que envolveu pessoas de diversas áreas, de diversas etnias, de diferentes classes sociais. Neste ponto, o antigo núcleo industrial de Porto Alegre, localizado nos antigos 3º e 4º Distritos da capital, são ao mesmo tempo reflexo e representação deste processo de desenvolvimento social, urbano e arquitetônico. A história desta região que engloba bairros tão diferentes como Independência, Floresta, São Geraldo, São João, Navegantes, Humaitá e Farrapos, é múltipla e diversa e engloba diferentes processos que ocorreram entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Ali estão representadas a história da indústria gaúcha, mas também a história dos movimentos sociais, a história da classe trabalhadora, da imprensa, da ginástica e do futebol, da religiosidade, a história de imigrantes de diferentes classes sociais que chegaram ao Rio Grande do Sul em busca de uma nova vida, e que com esta vida mudaram para sempre a história da cidade. 

Mas nem só de história vive essa região. Fatos e acontecimentos que ocorreram há mais de 50, 100, 150 anos moldaram não apenas a paisagem, mas também a sociedade e a cultura dessa parte da cidade. São tão importantes e tão representativos que reverberam até hoje. A região industrial, que estava inserida nos antigos 3º e o 4º Distritos, se tornou espaço de vinculação indissociável para atividades que não são apenas ofícios, mas parte da vida e da identidade de quem ainda hoje ocupa esse espaço, como marceneiros, serralheiros, sapateiros, funileiros, artesãos e, principalmente, papeleiros. Estes que há décadas compõem um grupo laboral e social significativo, com sua própria história, lutas e desafios. 

Com os avanços da especulação imobiliária sobre a região, acompanhada por um forte processo de gentrificação e apagamento dos testemunhos físicos e simbólicos, torna-se urgente um amplo debate envolvendo não apenas os agentes do poder público e investidores potenciais, que se debruçam sobre o planejamento urbano como quem analisa fria e despretensiosamente um cardápio de itens a comprar ou descartar segundo seus interesses pessoais. Não! Esta é uma discussão que deve envolver toda a sociedade, mas principalmente moradores e trabalhadores da região, além daqueles que se sentem representados pela memória que ali reside. Dessa forma, a situação atual do antigo núcleo industrial da cidade é como um “check-point”, um ponto de parada que nos força a refletir: que cidade queremos ser?

Assim, este presente manifesto foi construído por um grupo de pesquisadores e pesquisadoras a partir da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, baseando-se não apenas em estudos, mas também em amplos diálogos com moradores e distintos atores sociais da região. A partir dessas discussões, propusemos como ponto de partida quatro eixos de atenção e atuação:

1º EIXO: Valorização do passado histórico e cultural, pela proteção e divulgação do nosso patrimônio.

A antiga região industrial de Porto Alegre, que se localizava em uma vasta área ao norte da cidade e que estava inserida nos 3º e no 4º Distritos, foi palco de uma vida social muito rica, onde existia um pujante parque fabril, para onde se dirigiram grandes levas de imigrantes e onde viveram um grande número de operários e operárias. Nesta região foram erguidas muitas fábricas, mas também surgiram clubes, sindicatos, escolas, igrejas e outras associações que congregavam e mobilizaram seus moradores. Por esse motivo, é necessário impedir a destruição destas edificações, seu apagamento da história da cidade. É fundamental adotarmos imediatamente um programa de preservação que objetive proteger e também divulgar a história desta região.  

2º EIXO: Valorização da ambiência arquitetônica com a proteção de seus recursos e sua infraestrutura.

Como berço do processo de industrialização e principal foco da expansão urbana de Porto Alegre entre o final do século XIX e início do século XX, os 3º e 4º Distritos constituem-se como local fértil para a atuação de alguns dos mais importantes arquitetos e engenheiros locais da época que, longe dos paradigmas estabelecidos sobre a arquitetura “erudita” praticada no centro da cidade, puderam ousar, inovar e experimentar novas formas, estilos e sistemas construtivos. 

O resultado desse caldeirão de experiências e influências será um grande número de construções de alta qualidade, dos mais diversos estilos e que, em muitos casos, se mantém plenamente funcional, mesmo com o desaparecimento de seu uso original, justamente porque foram pensadas para durar e se adaptar às evoluções da tecnologia e da sociedade. Desta forma, preservar esse patrimônio edificado é um ato não apenas em defesa da história e da identidade de Porto Alegre, mas também uma maneira mais sustentável e contemporânea de se pensar arquitetura ao conciliar passado e futuro no desenvolvimento da cidade.

3º EIXO: Valorização da riqueza social da região, marcada pela diversidade e pela pluralidade.

A região dos antigos 3º e 4º Distritos apresentam atualmente uma diversidade social marcada pelo ativismo urbano, presença de movimentos e organizações sociais, moradores e trabalhadores que tentam permanecer nos bairros que compõem a região. É fundamental que os processos de decisão sobre as transformações também incluam essas pessoas através de uma efetiva participação social, respeitando o direito à cidade de forma a manter os interesses públicos.

Direitos já conquistados, como o Loteamento Santa Terezinha, devem ser mantidos. Esse lugar resultou da luta dos papeleiros num passado recente e ainda hoje precisam afirmar que habitam em um lugar de memória e valor. Os catadores como profissionais desempenham uma função importante no meio urbano, cuja relevância socioambiental é pouco reconhecida. Então, esse lugar também conta a história de um grupo de profissionais assim como outros tantos. A história de um lugar se faz por camadas de tempo. Passado antigo e recente se sobrepõem e se revelam de formas distintas. 

Diferentes atores sociais partilham de um mesmo território quando se reconhecem mutuamente como pertencentes ao lugar. É preciso ressaltar valores e desejos que sobressaem do próprio espaço que compartilham. 

4º EIXO: Alerta para os riscos de destruição e apagamento que a região está sofrendo com as recentes mudanças do Plano Diretor.

Diferente do previsto no Estatuto da Cidade (Lei n° 10.257/2001), nossa cidade não está sendo planejada de acordo com um plano diretor. Ao contrário, o Poder Executivo tem atuado sob demanda da construção civil, “recortando” a lei que estrutura o planejamento urbano. Isso pode ser constatado através de casos emblemáticos, dentre eles, o Programa +4D de Regeneração Urbana do 4º Distrito de Porto Alegre. Assim, o que era uma região de forte vinculação com indústria, mas onde havia também casas, comércios, clubes e espaços de lazer e socialização, pela proposta do Programa + 4D, deverá ser “posicionada no Século XXI” por meio de um pacote de benefícios para construtores e investidores. Benesses que incluem flexibilizações, como aumento de tamanho permitido de construção, incentivos de diminuição de impostos para quem investir em áreas escolhidas como prioritárias, com ênfase na região da orla.  

Dessa forma, os rastros da era da industrialização de Porto Alegre e de quem ajudou a construí-la serão completamente apagados, pois não interessam ao capital internacional ou nacional. Nem mesmo os órgãos de proteção ao patrimônio cultural estão sendo capazes sequer de diminuir essa perda, pois recentemente foram retirados da lista de bens protegidos da área (por meio da alteração da lei do inventário pela Lei Nº 13.288 de 26 de outubro de 2022) todos os imóveis de compatibilização: aqueles que ficam ao lado de bens com maior proteção. Com isso, abre-se a possibilidade de demolição de conjuntos para dar espaço a grandes empreendimentos, condenando ao desaparecimento as histórias de luta e de organização social da região. Ao mesmo tempo, a construção desenfreada de grandes espigões vai impactar a qualidade de vida dos moradores e moradoras, sobrecarregando a infraestrutura urbana e propiciando uma série de desequilíbrios ambientais. 

Isto posto, concluímos que:

É necessário defender a memória e o patrimônio local, encontrando saídas econômicas para o desenvolvimento da região que respeitem seu passado cultural e sua complexidade social. Por isso, defendemos que é necessário:

1. Impedir a destruição dos lugares de memória e adotar uma política de preservação para proteger e divulgar a história do 3º e 4º Distritos; 

2. Valorizar a identidade arquitetônica de Porto Alegre, em particular de sua antiga região industrial, conciliando de maneira sustentável o passado e o futuro do desenvolvimento da cidade; 

3. Reivindicar o direito à cidade, mostrando que o território composto pelo 3º e 4º Distritos é diverso e a vida humana neste local deve estar na agenda das transformações urbanas frente às edificações, o adensamento e a expansão do capital na região;

 4. Debater o futuro de Porto Alegre e do 3º e 4º Distritos a partir de uma perspectiva popular e democrática, revertendo o quadro atual em que apenas as grandes construtoras têm voz ativa no planejamento da cidade. 

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