Memória

Memórias de Aníbal, Paulo Sant’Anna e eu

Change Size Text
Memórias de Aníbal, Paulo Sant’Anna e eu

Aníbal tinha a minha admiração desde que foi meu professor no Jornalismo da PUCRS, no fim dos anos 1990. O lançamento do longa-metragem 3 efes, em 2007, pareceu-me a oportunidade ideal para entrevistá-lo. Carlos Gerbase, diretor do filme, construíra a narrativa com inspiração em um rasgo de sabedoria do mestre segundo o qual as pessoas são instigadas por três apetites básicos: a fome, a foda e o fasma – sendo esta última uma palavra de origem grega cujo significado corresponde a algo como “representação”. Além de bem-humorado (como se pode ver…), Aníbal era um sujeito discreto, pelo que pude conhecer dele. Mas era alguém que as pessoas deveriam conhecer. Por isso insisti que falasse a ZH.

Ele negou. Depois negou de novo, e de novo, dizendo que não fazia sentido que aparecesse, que não merecia o espaço e por aí vai. Até que, certa manhã, surgiu sem avisar na redação do jornal. Aceitou conversar, ceder as informações que eu quisesse, mas sem usar citações diretas (declarações entre aspas). Propus então um perfil, em vez do formato pingue-pongue. Ele topou, ainda revelando desconforto. Eis o início da matéria, publicada em 6 de dezembro de 2007 junto a outros dois textos sobre 3 efes:

A volta de Carlos Gerbase aos longas de baixo orçamento […] implicou em seu retorno aos filmes sem grandes estrelas. Mas seria incorreto dizer que em 3 efes não desponta um astro do cinema local. E isso que ele só aparece na primeira cena do filme, na qual não diz sequer uma palavra. […] Aníbal Damasceno Ferreira, 74 anos, é jornalista, roteirista e professor de cinema aposentado. Em suas aulas, transmitia aos alunos, Gerbase entre eles, uma teoria segundo a qual as pessoas são instigadas por três apetites básicos: a fome, o sexo e o fasma […]. Até que, certa vez, um gaiato sugeriu, lá do fundo da sala, que se substituísse o sexo por aquele sinônimo que começa com a letra efe, podendo assim chamar a tal tese de “teoria dos três efes”. A história virou anedota e, na forma de homenagem ao mestre, o ponto de partida do novo filme do cineasta. […]

Em uma pequena sala de dois por dois metros à entrada da redação de ZH, Aníbal começou contando episódios da infância em Erechim, incluindo o projetor de filmes que ele e o irmão construíram com uma lata de formato cilíndrico e lupas “daquelas que vinham de brinde quando a gente comprava medicamentos nas farmácias de antigamente, sabe?” Rememorou o trabalho como operador de áudio na Rádio da UFRGS e na Farroupilha, a seção sobre a língua inglesa que ele escrevia no jornal A Hora (sob o pseudônimo Mary Parker, cuja misteriosa identidade alimentou outra de suas afamadas anedotas). Sobre o ofício de roteirista de documentários, cinejornais e longas-metragens ficcionais mal deu para falar. É que, depois de alguns minutos de bate-papo, fomos surpreendidos pela entrada abrupta de um amigo dos tempos de juventude do entrevistado: Paulo Sant’Anna.

A sala em que estávamos era toda envidraçada e ficava junto ao corredor de acesso à redação, de modo que era difícil adentrar o espaço e não ver quem estava lá dentro. Sant’Anna passou por ali e, ao reconhecer o velho parceiro, não se conteve. Abriu a porta sem bater, abraçou-o e, sem se preocupar por um segundo com o que porventura estivesse acontecendo antes, engatou uma série de recordações evidentemente compartilhadas por Aníbal, embora meu entrevistado tenha preferido se manter em silêncio na maior parte do tempo que restou daquele encontro.

Eram memórias de algumas décadas atrás, quando o reservado professor e o expansivo colunista tinham personalidades ao menos um tantinho mais próximas. Naquele instante, ao menos para mim, parecia não haver pessoas mais diferentes entre si. Sant’Anna falava, Aníbal silenciava, exceto por acenos afirmativos com a cabeça e frases invariavelmente curtas. Entendi que meu entrevistado se sentiu constrangido pela interrupção da nossa conversa, mas também ficou com receio de chamar mais atenção do que gostaria. Sant’Anna chamava atenção, muita atenção, sempre.

Mas havia uma conexão entre eles. Aquele tipo de afeto que há com quem se partilham as boas lembranças. Ocorre que descobertas juvenis, farras em parceria e outras aventuras do tipo acabavam remetendo a causos mais recentes sobre os mesmos temas, por assim definir, e aí a discrição de Aníbal surgia como barreira à continuidade da conversa. Ele havia pedido para não gravarmos a entrevista em áudio. Se por acaso tivesse permitido que eu ligasse o gravador, seu desconforto seria ainda maior.

Para mim, aquelas confissões estavam tão divertidas que não consegui deixá-los a sós. Creio que também por isso chegou um momento em que Aníbal, vendo que Sant’Anna não pararia de falar e eu não teria coragem de interrompê-lo, muito menos de sair dali, decidiu encerrar o encontro. Avisou que precisava ir embora e se despediu sem que finalizássemos de fato a entrevista. O trecho final do texto publicado, que reproduzo a seguir, reforça o constrangimento do professor com a condição de entrevistado:

Discretamente, depois de já ter se despedido, Aníbal retornou e pediu novamente que a matéria citasse o que o repórter bem entendesse, mas nada entre aspas. […] Disse preferir que, em vez dele, os outros falassem. “O filme nem é meu. Fico honrado com tudo, mas foi o Gerbase que fez 3 efes. Deixa ele falar.” O autor deste texto, no entanto, como seu ex-aluno e discípulo, resolveu fasmar.

A verdade é que não era somente a condição de entrevistado que constrangia Aníbal, mas o conteúdo indiscreto das recordações e também revelações do velho chapa. As lembranças e a verborragia de Sant’Anna não tinham freio, nem filtro. Pena que nada daquilo ficou gravado. Esquecido, ao menos, não está.


Daniel Feix é jornalista, autor de Teixeirinha, coração do Brasil (Diadorim, 2019).

RELACIONADAS
;
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.