Modos heroicos de ser em Porto Alegre (II)
Uma série do livro de Leonardo Antunes
A sinceridade do gaúcho é mesmo assombrosa – mais assombrosa ainda pela naturalidade com que é recebida pelos demais gaúchos. Coisa que, em outro lugar, resultaria em tiro, briga ou no mínimo rompimento permanente de todo contato com uma pessoa, aqui, é matéria-prima para a educação civil.
Esta semana a Diandra escutou da fisioterapeuta um causo muito bom nesse sentido.
“Faz quanto tempo que você está com essa dor?”
“Quase dois meses.”
A médica assentiu em silêncio, rindo baixinho por um momento, e depois emendou:
“Meu esposo, que também é físio, costuma falar um negócio engraçado para os pacientes dele nessa situação.”
“Ah, é?”
“Uhum. Na verdade, ele ouviu primeiro de um dentista e resolveu adotar a tirada. Ele chegou no consultório com uma dor de dente terrível. Então, o dentista perguntou quanto tempo fazia que ele estava com dor. ‘Três meses’, ele respondeu. O dentista deu uns tapinhas nas costas dele e disse: ‘Três meses com dor? Não te preocupa. Tu não é burro. Tu só é ignorante. A gente vai resolver isso aí.’”
Esta história também é um exemplo da máxima cortesia do gaúcho: em vez de chamá-lo de burro logo de cara, ele conta um causo em que alguém bateu cabeça com um problema semelhante e, por isso, foi chamado de burro.
É homérico a ponto de causar inveja até no velho Nestor.
Leonardo Antunes é poeta, tradutor e professor de língua e literatura grega na UFRGS. Publicou, entre outros, Édipo Tirano, tradução da clássica tragédia de Sófocles pela editora Todavia. O livro que deu origem a esta séria se chama Diários de um paulista em Porto Alegre e vai ser lançado por ocasião dos 250 anos da capital gaúcha, em março de 2022.