Memória

Mudou minha vida

Change Size Text
Mudou minha vida

Aos dezessete anos, em 1975, tive o encontro com Aníbal Damasceno que mudou minha vida. 

Acontece que desde os doze anos eu frequentava a Escolinha de Artes no Instituto de Belas Artes em Porto Alegre. Um lugar para estimular a criatividade de crianças e adolescentes. Ali tive oportunidade de rodar os primeiros rolinhos de Super-8, com uma câmera que foi presente de Natal.

E nesta mesma Escolinha, percebendo o interesse em mexer com filmes, uma certa professora Eunice sugeriu que minha turma batesse um papo com o noivo dela, Aníbal Damasceno Ferreira. 

Este papo rolou numa noite quente que anunciava o verão bem no fim de 1975 e, sim, mudou minha vida. Em torno de uma mesa onde eu estava com mais meia dúzia de colegas, ouvi Aníbal perguntar como podia ser útil. 

Não lembro como a conversa começou a partir dali, mas logo os colegas foram saindo de fininho, cada um se dedicando a outras atividades durante a aula, porque – disso eu lembro bem – comecei a monopolizar o pobre Aníbal com mil perguntas sobre as técnicas milagrosas aplicada na arte de contar histórias através de um filme. 

Até então eu só sabia alguma coisa de filmagem por ser autodidata, e aprendia quebrando a cara, mas ali à minha frente estava alguém que simplesmente era professor de Cinema na PUC. Eu queria arrancar do Aníbal tudo, tudo e um pouco mais.

Ele teve paciência infinita para explicar este tudo, mas tudo mesmo que se deve saber de linguagem cinematográfica. Por exemplo: o que é eixo de filmagem? Não sei se isso é do conhecimento público, então esclareço que a compreensão e o uso adequado do eixo cinematográfico separa os sub-20 dos profissionais. Pois isso eu aprendi, e mais um tanto imenso, naquele papo histórico. 

Tive ali um resumo do amplo conhecimento que o Aníbal repassava em suas aulas de cinema na PUC. O que eu ignorava, e vim a saber mais tarde, é que além deste conhecimento ele tinha um currículo mais rico e extenso. Porque Aníbal era um importante intelectual gaúcho, sem o ranço que esta palavra traz. 

De fala mansa e humor ácido, Aníbal teve notável contribuição ao apresentar ao mundo a figura de Qorpo Santo, um pioneiro do teatro do absurdo, cuja memória foi resgatada graças a nosso mestre. 

Como se não bastasse, Aníbal era bom de roteiro, assinando o texto do longa-metragem “Gaudêncio, o centauro dos pampas”, rodado no Sul e estrelado por Paulo José. Antes, em meados da década de 60, Aníbal participou de curtas de colegas, até como ator. Eu assisti um destes curtas numa rara mostra de relíquias do cinema gaúcho, e recordo como a atuação dele era hilária, desconcertante mesmo.

Foi um pouco depois do encontro naquela noite de 1975 que Aníbal assistiu aos meus primeiros filmes Super-8, entre eles “O caminho da onisciência”, uma salada simbolista, sem som – e diria que sem nexo. Mesmo assim, ele bateu o olho em mim e percebeu (antes de me dar conta) que eu já tinha atitude, fundamental para um profissional como eu viria a ser.

Daí, Aníbal deu dicas. Falou de filmes, de diretores – e não esqueço como ele

dissecou uma cena de “Duas inglesas e o amor”, do Truffaut, demonstrando como dava para prever a sequência de imagens (o que se chama de decupagem), desde que se entenda o que é linguagem cinematográfica.

Enfim, este encontro me empurrou para a decisão insana (para os padrões da época) de estudar cinema, usando o pretexto de cursar a faculdade de Comunicação Social. Aníbal foi então meu professor de fato, e depois que me formei continuamos a nos encontrar ao longo dos anos. 

Na verdade, estes encontros se perpetuam até hoje, uma vez que eu não seria nada em minha modesta carreira sem o empurrão fatal que recebi do Aníbal depois daquela noite quente de 1975. Não só eu, mas meus colegas de geração, as turmas que vieram depois, o pessoal do teatro… enfim, aqueles que fazem de Porto Alegre uma usina inesgotável de energia criativa pagam tributo todo dia ao nosso mestre. 

Aníbal vive, e se o mundo hoje tem mais graça é por causa dele.


Nelson Nadotti é cineasta, diretor de Deu pra ti, anos 70, junto com Giba Assis Brasil, e autor de telenovelas.

RELACIONADAS
;
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHEUM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHEUM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.