Memória

Os irlandeses

Change Size Text
Os irlandeses
Naquela manhã, se a memória não me trai, ele propôs uma tarefa logo de cara, finalizando sua fala com o indefectível cacoete de bater o pé direito no chão, como um bailarino de flamenco irritado. Ele me intimidava, por isso acho que pouco falei em suas aulas. Sarcástico, irônico, certeiro, não passava pano para nossas idiossincrasias estudantis. A proposta era fazer um roteiro em aula, bem curto, com uma criança como personagem. Pelo menos foi o que entendi. Quase não acreditei naquilo. Muitas horas de Sessão da Tarde, com filmes em preto e branco dos anos 40 e 50, começaram a rodar na minha cabeça. Ia ser demais usar algumas daquelas lembranças e, claro, surpreender o sapateador, ou melhor, o professor. Preciso ser criativa e ousada, pensei. Um menino como daquela família do James Stewart em “A Felicidade não se compra”, campeão de reprises e lágrimas. Cabelos fartos e ruivos, evidente, com sardas indispensáveis e olhos claros revelando a descendência irlandesa, como muitos norte-americanos daquelas sessões vespertinas. Aliás, não havia filtros para as Sessões da Tarde, e um pré-adolescente poderia se chocar ao ver aquele pai de quatro filhos saudáveis e marido amoroso pensar em suicídio. Como assim? Era muito chocante! Não lembro do que escrevi, só do meu personagem joyceano, mas é provável que o enredo tivesse algum drama e torrentes de lágrimas. Meu primeiro roteiro estava pronto, feito com uma facilidade que me surpreendeu. Agora era segurar a expectativa até a próxima aula de cinema com o nosso bailarino irascível. Na época, início do curso de jornalismo da PUCRS, eu ainda ocupava as fileiras mais da frente, próximas do professor (antes de me abrigar nos fundos sob meus óculos rayban), e assim, tranquila e otimista, estava aguardando o veredito sobre os roteiros. Mal começou a aula, com suas críticas e análises dos roteiros, ele disse que era impressionante a afluência de meninos ruivos e sardentos em nossas criações. Senti o sangue subir no rosto, além do malfadado frio na barriga. Só torcia para ele não dar o nome aos bois (no caso, o meu e o dos outros “pais” da prole ruiva). Pelo menos desse vexame fui poupada. Mas não do meu espírito crítico. Daí foi ladeira abaixo: críticas sarcásticas pela nossa reverência ao cinemão americano e seus clichês, à falta disso e excesso daquilo. Assim como começou, minha carreira de roteirista acabou em duas aulas. Nunca esqueci esse episódio. Lena Annes – Jornalista

Quer ter acesso ao conteúdo exclusivo?

Assine o Premium

Você também pode experimentar nossas newsletters por 15 dias!

Experimente grátis as newsletters do Grupo Matinal!

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.