Memória

Capítulo 4: Uma vida plena, antes do furacão

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Capítulo 4: Uma vida plena, antes do furacão

De um texto mais reflexivo, na crônica anterior, convido leitores e leitoras, agora, para uma narrativa um tanto mais “positivista”, no sentido de historiar os fatos cronologicamente, para dar-lhes uma ideia de como a Síndrome Pós-Pólio foi se insinuando na minha rotina, sem que eu percebesse sua chegada sorrateira.

Para dar conta da transformação que iria se dar na minha vida, talvez seja melhor narrar como era meu dia a dia em tempos passados. Mas por onde começar? Que marco referencial estabelecer, para, ali adiante, tentar vislumbrar um divisor de águas? 

De pronto, me ocorre lembrar que, em agosto de 2006, há 16 anos e quando contava eu com 43 de idade, mudamos para o Condomínio Cantegril, em Viamão, uma casa de dois pisos com uma escada de 14 degraus, se não estou enganado, que levava para a parte íntima, no segundo andar. Era muito tranquilo para mim subi-los, pois, além de largos, a distância/altura entre um e outro não era muito significativa. Mas era uma escada… Na época, adquirimos o terreno ao lado, medindo 12 metros de frente por 30 de largura. Pasmem: eu cortava a grama da área anexa e, também, a parte gramada dos fundos da nossa casa: segurava o cortador elétrico com uma mão (a mesmo que acionava a lâmina de corte) e, com a outra, me apoiava em uma bengala. Tomava um suadouro máster, levava uma hora e 30 minutos, ou mais. Mas cortava.

A propósito: naquele mesmo agosto de 2006, mais exatamente no dia 9, às vésperas da mudança para Viamão, fui a São Paulo em uma excursão aérea, bate-volta: embarcamos às 14h30min, chegamos à capital paulista por volta das 16h e fomos direto para o Estádio do Morumbi, onde, à noite, Rafael Sóbis destruiria a camisa do São Paulo, pisaria em cima dela, etc., nos tempos em que o Pedro Ernesto ainda era um narrador à altura dos feitos nas quatro linhas. Voltamos ao meio-dia da quinta-feira, e fui direto para a RBS, onde atuava como secretário-executivo do Portal Social, da Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho (FMSS).

Uma semana depois, três dias depois de me mudar para o Cantegril (mudança em que deu absolutamente tudo errado e parecia não terminar nunca), cheguei ao Beira-Rio por volta das 14h30min, e lá fiquei esperando, em pé, debaixo do frio e de uma chuva fina que caía em Porto Alegre, até por volta das 18h, quando os portões finalmente abriram. Naquele momento, só me restou usar dos parcos recursos diplomáticos de que dispunha, para entrar antes dos meus amigos e finalmente me sentar: fui costeando a enorme fila em direção ao Portão 8 gritando “Licença, defiça! Licença, defiça!”. Passando a catraca, subi com alguma agilidade os degraus da Social e fiquei lá em cima, acomodado no cimento de então, aguardando meus parceiros de primeiro título da Libertadores. O jogo, vimos de pé, e ao final dele eu estava na lona. Mas para lá de faceiro, obviamente.

Não posso me distrair com os sucessivos títulos do Inter dali para a frente, os quais acompanhei todos in loco (e bem louco, diriam os mais chegados). Então, volto à narrativa principal para lhes dizer que, em 2009, quando já havia me desligado da FMSS, e, a partir de 9 de fevereiro, passei a babar pela Isabela, a minha filha mais nova (e sigo babando, diga-se), iniciou-se minha jornada de produção de livros sobre momentos da história do Brasil, bem como sobre temas ligados à cultura, à economia, ao comportamento e à sociedade. Ainda em 2010, visitei, pessoalmente e sozinho (o excelente fotógrafo Ita Kirsch foi depois, já com uma pauta do que deveria registrar), 15 projetos sociais tocados exclusivamente por mulheres, quase todas elas em situação de vulnerabilidade social, que encontraram no artesanato, não só uma fonte de renda, mas, também, de resgate de sua identidade como seres humanos. Foram quatro viagens dentro do Rio Grande do Sul (Canoas, Ivoti, Rio Grande e São Borja), e o contato com outras 11 iniciativas, em oito Estados: Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Norte. 

Não fiz tudo de uma vez só, claro. Em geral, os roteiros previam dois projetos em cada viagem de dois a quatro dias, ou em dois Estados (como quando estive em Recife e, em seguida, em Natal). Era um tal de sobe-desce de avião, carrega mochila e bolsa, faz check-in, faz as entrevistas, ganha coisas e trecos de brinde (livros pesados, inclusive), faz check-out, sobe e desce nas aeronaves… Peguei ônibus, van, avião, táxi; caminhei bons pedaços a pé, até localizar pousadas ou os próprios projetos. Hoje, parece uma aventura inacreditável, a qual resultou em um belíssimo livro chamado Mãos meninas mulheres: a cultura como ferramenta de geração de renda e inclusão social. Histórias lindas, belas imagens.

Em 2011, um sinal de alerta, como narrei no início desta série: na renovação da minha carteira de habilitação, foi-me indicado o uso de acelerador e freio manual, porque a minha perna direita dava mostras de já não ter toda aquela agilidade e força para conduzir com segurança um veículo automotor. Eu dirigia desde 1997, quando, logo depois de sair de ZH, adquiri um Pálio 1.5 com embreagem semiautomática, no qual fiz as aulas e a prova final. Mas só fui saber que era obrigatório o novo equipamento para acelerar e frear quase um ano depois: resolvemos comprar um carro 4 portas e com ar-condicionado, e ao ver o laudo que eu havia buscado somente um dia antes foi a atendente da concessionária quem me alertou da circunstância. Fazia uns dez meses que eu estava dirigindo “perigosamente”, para mim e para os outros.

Aos poucos, comecei a perceber que, ao subir em uma escada para arrumar um chuveiro, trocar uma lâmpada ou fazer um furo na parede para pendurar um quadro, eu tinha que me apoiar um pouco com as mãos e braços, para ajudar a perna a vencer os degraus e a me dar impulso para cima. Na época, achei que era da idade, ou do sobrepeso, que me acompanha até hoje, aliás.

Segui produzindo livros, viajando bastante, até que em 2015, logo depois de fechar os detalhes da produção dos textos da biografia do José Galló, atual presidente do Conselho de Administração de Lojas Renner S.A., tive uma queda em casa e fiz uma fissura na minha perna esquerda. Era dezembro, e foi-me recomendado repouso de pelo menos três meses, até a fissura consolidar. Mas, logo em janeiro do ano seguinte, eu precisei ir a Candelária, para combinações referentes às pesquisas para um romance histórico sobre os 90 anos da Sicredi Centro Serra, uma das cooperativas mais antigas do sistema, fundada em 1927, em Agudo. Viajei cheio de dores no banco de trás do carro, com a Fernanda, minha esposa, dirigindo o Pálio. São quatro horas de viagem, fomos e voltamos no mesmo dia, pois eu quase não conseguia caminhar e me sentia muito desconfortável. Ossos (fissurados) do ofício.

Nesse mesmo ano, além de várias outras viagens para a região Centro-Serra, incluindo também Sobradiniho, um momento sublime: em dezembro de 2016, o Grupo Vocal Canta-Ventos comemorou 20 anos de uma belíssima história, sempre sob a regência musical da querida e talentosíssima Simone Rasslan. O grupo tem quase 40 integrantes, e nas canções em que eu não fazia parte da cenografia principal havia sempre uma cadeira por perto, para que eu desse um descanso para o famoso joelho direito, que, a cada mês que passava, se ressentia mais das tarefas que lhe cabiam. Ainda assim, tive o privilégio de compartilhar com o grupo uma canção com letra e melodia compostas por mim, e que fechou a apresentação no lotado Teatro do SESC, na Alberto Bins. Uma emoção inesquecível.

Em 2017 e 2018, muitas viagens, para livros também belíssimos, como Os gaúchos e o churrasco – uma jornada ao redor do fogo, com a curadoria e companhia na pilotagem de Clarice Chwartzmann e da fotógrafa Carin Mandelli. Fomos a Lagoa Vermelha, Cambará do Sul, São Miguel das Missões, Pelotas, Santa Maria, São Sepé e Sant’Ana do Livramento, captando os diferentes jeitos de se assar o churrasco, de acordo com a história e a cultura local. Também da época o não menos relevante Queijo artesanal serrano – cultura e identidade nos Campos de Cima da Serra, com várias viagens para a região de Vacaria, São José dos Ausentes, Caxias do Sul, São Francisco de Paula, Jaquirana, Bom Jesus, e por aí vai. Estradas, chão batido, histórias. Muitas e belas histórias.

Mas no Carnaval de 2019, mais exatamente na sexta-feira, dia 1º de março, o grito (ou seria melhor sussurro?) de alerta: quando chegamos a Atlântida Sul, onde meus sogros têm casa, para passar as festas de Momo, o joelho direito, do nada (ou assim me pareceu, posto que não havia caído, torcido, coisa nenhuma) simplesmente se recusou a seguir trabalhando. Só aceitava que eu desse poucos passos, e com muita dor, da cama para o banheiro, do banheiro para o sofá da sala, bem ali do ladinho, e do sofá para a mesa, depois da mesa para a cama. Na volta para Porto Alegre, depois do feriado, consulta em ortopedista, ressonância magnética e a constatação de que tinha um pouco de tudo nas articulações, nos músculos e nos tendões: desgastes, rompimentos, falta de – menos condições normais e desejáveis, claro. Mas ninguém da área médica falou em Síndrome Pós-Pólio, na ocasião. Era como se ela não existisse, e continuou não existindo para mim. O fato é que tive que me mudar para o térreo da nossa casa, para evitar subir escadas. No ano seguinte, novamente no Carnaval, veio a megafratura na perna esquerda, em seguida o flagelo da pandemia mundial de covid – e a todas essas eu não lembro qual foi a última vez em que estive no segundo andar da casa, a qual vendemos há cerca de dois anos. Mas isso eu conto semana que vem.

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