Memória

Preliminar

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Preliminar Bola de futebol

Nasci em 1977 na beira do Arroio Dilúvio, no Hospital Ernesto Dornelles, no ano morreu Elvis Presley, o conjunto Almôndegas lançou o disco Alhos com Bugalhos, foi reaberto o Congresso Nacional numa caneteada do Ernesto Geisel, e entre tantas outras coisas, o Pelé encerraria sua carreira como jogador profissional pelo New York Cosmos, vencendo o Santos por 2 x 1. Meu núcleo familiar morava na Av. Ipiranga para poucos anos depois mudar-se para a Zona Sul, num primeiro momento em Teresópolis, depois no Nonoai, para se estabelecer um bom tempo no entroncamento do bairro Cavalhada com Camaquã. Provavelmente dali da Ipiranga foram pela Azenha ou Érico Veríssimo, para depois pegar a Carlos Barbosa, costeando o Estádio Olímpico e seguir adiante até Teresópolis. Mas depois de nos estabelecermos na Rua Landell de Moura, o itinerário de ida e volta para o centro da cidade passou a ser percorrido, na maioria das vezes, pela linha de ônibus Padre Reus, indo até o Hipódromo, passando pelo posto de gasolina Falcão, subindo a Pinheiro Borba, descendo até a Padre Cacique e vendo aquela paisagem do Delta do Jacuí, costeando aquele templo futebolístico construído sobre o Guaíba, com um nome oficial desconhecido da mesma rua que eu acabara de passar, Estádio José Pinheiro Borba, mas popularmente conhecido por Estádio Beira-Rio, para depois pegar a Borges e entrar na zona central. Fato é que eu já tinha nascido colorado e rumava pra uma criação na zona sul. 

Minhas vagas lembranças praticamente começam ao ver meus irmãos mais velhos jogando bola nos fundos da casa no bairro Nonoai, um ou outro carnaval infantil no clube homônimo ao bairro, tentar achar uma boa forquilha pra fazer uma funda, uma ou outra festa junina em casa, e a agitação de um deslocamento pra um pouco mais ao sul, na Cavalhada, em plena Copa de 1982. Lembro nitidamente da sensação em meio a caixas e móveis desarrumados pela mudança, de estarmos almoçando e vendo a final entre Brasil e Itália. Meus cinco irmãos mais velhos (uma irmã), pai, mãe, eu e meu até então irmão mais novo, com alguns meses. Lembro anuviadamente do pico de alegria do gol do Falcão e da extrema tristeza no fim do jogo, pois a seleção brasileira havia perdido de 3 x 2, e não iria para a final da copa. Lamento esse que duraria alguns anos.

Os anos se passaram em meio a brincadeiras de rua como taco, esconde-esconde, peão, bolita, desbravar as ruas andando de bicicleta, soltar pandorga, jogo de botão, bater figurinha, mas sobretudo o bom e velho futebol nos campinhos de areião da zona sul, e paralelepípedos das mais variadas ruas do bairro. Sempre era um acontecimento. Quando os pais compravam uma bola era como ter ouro reluzente. Cuidávamos das pelotas passando restos de sebos tirados das carnes, para amaciar e preservar o couro da bola. Eu particularmente passava horas fazendo embaixadinhas, chutando a bola na parede de casa ou em algum muro, hora com o pé direito, hora com o esquerdo, tentando dominar de cabeça, de peito, jogando a bola para cima e tentando dominá-la sem ela quicasse no chão. O lance era fazer com que ela praticamente colasse no pé. Bueno, estava pronto para a próxima pelada. Mas ainda tinha que prever a direção que a bola tomaria ao quicar no paralelepípedo, rezar pra não cair no pátio de algum vizinho invocado ou com cachorrões, cuidar pra não estragar o portão de alguma casa, e principalmente os vidros. Caso estivéssemos num campinho de areião, além da técnica em si, tínhamos que ter em mente a probabilidade física de não parar onde a gente queria, por conta do escorregar nos infinitos grãos de areia, que hora te beneficiava quando o marcador vinha correndo te tirar a bola, e tu dava um cortezinho seco, e o maluco passava lotado, hora te atrapalhava numa jogada de linha de fundo, quando ao invés de fazer o cruzamento, se quisesse cortar pra driblar o marcador, iam os dois escorregando um ou dois metros. Ou te desgraçava numa queda, geralmente te lanhando os joelhos, a bunda e os cotovelos. Quando o campo era misto de grama e terra, havia os cucurutos. Também fazia parte do amplo espectro técnico e tático que se deveria ter em mente. E a rainha desses campos, a bola, hora tratada com carinho e reverência, hora maltratada como só, reinava plena esperando o anoitecer e os gritos de alguns pais chamando um ou outro pra tomar banho e jantar. E ela nunca era esquecida. Aliás, via algumas camisetas e moletons esquecidos. Até bicicleta já vi. Mas nunca uma bola.

A década de 80 foi uma ebulição. O rock sendo alçado ao pop, artistas e instrumentos com estéticas futurísticas, país se encaminhando pra uma abertura política, brinquedos sendo lançados a todo o vapor em conjunto com desenhos e filmes direcionados para o público juvenil. Os filmes d’Os Trapalhões lotavam cinemas, artistas internacionais começaram a vir fazer shows em Porto Alegre com mais frequência, a chegada do Papai Noel com a Xuxa e outros artistas televisivos bombavam. As bandas de rock nacional vinham direto, e os shows ao ar livre nos parques da cidade eram corriqueiros, as pessoas recém começavam a ter telefone, e ao mesmo tempo em que nos aproximávamos do fim do milênio, tenho a impressão que não estávamos tão longe  das décadas anteriores. A sensação era de futuro, mas os terrenos baldios eram fartos, embora alguns já estavam sendo cercados a passos relativamente leves. Muitas brincadeiras de rua ainda eram as mesmas, embora os videogames estavam sendo postos no mercado. O tempo era mais lento. O tempo de bola era mais cadenciado. Só o futebol de salão, hoje futsal, era mais dinâmico. Mas também tinha uma bola pesada que dava medo. Goleiro de futebol de salão era Jesus Cristo na via crucis. Levava bolada a torto e direito. Qualquer menção de um chute já era um baita drible, pois o adversário se encagaçava e quase saía da tua frente. Quem ficava, virava de costas e falava alguns palavrões do seu vocabulário, já esperando aquela bola pequena e pesada “nas paleta” ou “nas coxa”. Se dizia que a bola “chupava”. Aquelas bolas Dente de Leite também. Era um troço emborrachado que deixava cada vergão no cara que Deus o livre! As bolas não muito cheias também eram traiçoeiras. As coxas ficavam mais expostas porque os calções da época eram curtos. Não eram as bermudas de hoje. E as boladas com essas bolas assassinas eram torturantes. Mas pra tirar o cara do jogo só uma bolada no saco, vulgo “partes baixas”, colhão, enfim, testículos. Aí derrubava o vivente. Às vezes vinha um parceiro pra te dar uma força, levantando tuas pernas pelos calcanhares e chacoalhando-as. Não sei se essa ação resolve. Pra mim não resolvia muito, mas era o que se sabia. Enquanto isso o cara ficava a beira da morte, vendo estrelas, trombetas, tambores, até retomar a consciência e seguir o jogo. Sobretudo se estivesse perdendo. Uma pechada de joelho contra joelho também poderia te tirar do jogo por alguns instantes. Bah! Só de lembrar dessas dores me arrepio. Mas só assim pra te fazer parar de jogar. Não tinha tempo ruim. Não tivesse uma bola pseudo-oficial, dava-se um jeito de fabricar uma de meia, enxertando jornais e panos até rolar minimamente e adquirir um tamanho razoável. Um limão ou uma laranja verde dava pro gasto. Só não podia chutar muito forte ou pisar em cima com muita força. Isso dava um apuro e uma leveza nos movimentos pro jogo. O fato de se estar ou não de tênis também não era empecilho. Tinha uns que adquiriam uns cascos ao longo do tempo, e nem jogavam de tênis. Hoje em dia eu sei que muitos nem tinham um tênis pra jogar. O futebol nos campinhos não tinha classe social. Era uma questão de oportunidade, hora e local certos, número de gente afim e já dava jogo. Podia ser dois contra dois, três contra três, enfim, dependia no tamanho do campo. Até um contra um, num jogo chamado gol a gol, se podia jogar com uma rivalidade e uma importância épica. Gol a Gol é geralmente um contra um, mas às vezes até com dois ou três pra cada lado do campo, onde só se podia chutar no gol antes do meio campo, e não se podia pegar com as mãos na área. Não tinha goleiro. Porém, se qualquer jogador “matasse” (dominasse) a bola no peito, ou na cabeça, aí dava drible. Ou seja, virava jogo normal até um time fazer um gol, que só valeria dentro da área adversária. Quando isso acontecia, voltava ao gol a gol. Tinha também o jogo “Três Dentro-Três Fora”, no caso de apenas uma goleira estar à disposição no campinho, ou ter duas árvores relativamente próximas, aludindo uma coleira. O jogo consistia em: dois ou três jogadores contra o goleiro. Se o goleiro conseguir três pontos antes dos jogadores de linha, ele ganha o jogo e o direito de sair do gol. Se os jogadores de linha fizerem três pontos antes, frita (mantém) o goleiro. A pontuação do goleiro é quando os jogadores de linha chutam pra fora. Só vale chutar de fora da área e com a bola no ar, sendo que o gol vale um ponto para os de linha. Ah, dentro da área o jogador só pode finalizar de cabeça, mas se o goleiro agarrar a bola, é ponto dele também. E não vale dominar, tem que chutar direto. A criatividade da gurizada com um objeto esférico em mãos, quer dizer, nos pés, não tinha limites.

As famílias que gostavam do “esporte bretão” – em tese, pois na China e Grécia antiga já se tinha indícios de jogos num formato parecido do que a gente entende por futebol hoje – ouviam muito rádio, e se combinavam de ir aos jogos no fim de semana. Meu pai me levava muito aos jogos no Beira-Rio, e de vez em quando em algum Gre-Nal no antigo estádio do Grêmio, o Olímpico. Engraçado: eu falando nos jogos que vi no Olímpico para meus filhos de 12 e 8 anos, me dá uma espécie de déjà vu, ao lembrar do meu pai falando do antigo campo do Inter, o Eucaliptos, quase que desconhecidamente intitulado Estádio Ildo Meneguetti, onde inclusive sediou dois jogos da Copa do Mundo de 1950.  Onde no final dos anos 80 e início dos 90 eu iria conhecê-lo muito mais como pista de kart do que como campo de futebol. Alguns anos adiante cheguei a jogar futebol sete ali, quando fizeram algumas reformas, pra no ano de 2012 ser demolido e dar lugar a mais um empreendimento imobiliário na cidade. Mas voltando. Como eu disse, íamos a muitos jogos no Beira. Tenho lembrança de me imaginar jogando como Ruben Paz, e colocar muitos nomes dos jogadores dessa época nos meus times de futebol de botão. Além do Ruben Paz de camisa 10, a zaga era sempre Aloísio e Mauro Galvão. Ou Pinga. Na lateral direita era quase sempre o Luiz Carlos Wink, no meio geralmente eu colocava o Luis Fernando Flores. No gol, Taffarel. Pra compor o time geralmente eu recorria aos lendários dos anos 70 como Falcão, Valdomiro, Mario Sérgio e outros. Fui forjado como torcedor, peladeiro, aspirante a profissional e botoneiro, idolatrando o maior time de futebol dos anos 70, o que ganhou um campeonato brasileiro invicto, o que representou a Seleção Brasileira nas Olimpíadas de 1984. Mas nos anos que se seguiram, além do anos de 1981 e 1983, mas sobretudo de 1985 à 1990, só deu Grêmio. Em 1986 o Brasil saiu precocemente de mais uma Copa do Mundo. Lembro do meu pai se ajoelhando no chão e gritando “nããão” ao ver o Zico perder um pênalti contra a França. Logo o Zico. Um dos meus poucos ídolos que não eram do time do Inter. Uma unanimidade mundial praticamente. Falcão, Zico e Sócrates. Que meio campo. Não terem sido campeões mundiais pela seleção brasileira é daquelas injustiças da vida, que nos faz exercitar a resiliência, e ficar eternamente conjecturando possibilidades, tanto pra entender a realidade, quanto para devanear uma linha temporal e exercitar o velho “se”. “Se” tivesse acontecido isso ou aquilo. E justamente em meio a esse turbilhão futebolístico de ressaca pós-eliminação de copa, dando continuidade a uma outra ressaca, só que política, a da morte de Tancredo Neves um ano antes, e dando início a um período de inflação extrema no país, presenciava  meus pais se separando. Migrei de uma escola particular para uma escola pública, fui morar com a minha mãe e minha avó no bairro Menino Deus, onde andar de bicicleta pelas ruas do bairro, com uma bola numa sacola, procurando pracinhas livres pra eu jogar sozinho, ou ser convidado pra uma pelada, durante alguns anos foram minhas ocupações fora da escola. As preces da minha mãe para que o Tancredo se recuperasse e assumisse a presidência não deram certo, as preces do meu pai e do povo brasileiro pra seleção passar pela França não funcionaram, minhas preces pros meus pais não brigarem e sobrar pra mim, e não se separarem não surtiram efeito, minhas preces pra que eu não sofresse algum tipo de chacota ou provocação, o que hoje se entende como bullying não deram em nada, minhas preces pro Inter ser campeão não vingaram, e minhas preces pra ter um Kichute novo e aposentar meu Bamba, não foram ouvidas. Ou seja, Deus não estava do meu lado

1987 chegou, inventaram a Copa União, mudei de uma casa pra um apartamento a contragosto. Minha mãe era constantemente multada pelo barulho, pois eu e meu irmão mais novo até então, tocávamos o terror jogando bola e brincando de lutinha no AP. Tentei completar o álbum de figurinha desse campeonato brasileiro com outro nome, continuava a ouvir rádio com programações musicais e os jogos do Inter, alguns seriados na TV como Bonanza, Super Máquina, Daktari, Esquadrão Classe A, Chips e os desenhos animados, via as novelas com a minha mãe e minha avó, brincava com bonequinhos de forte apache, continuei jogando botão e pino-gol, e batia figurinha (os  vizinhos debaixo “adoravam”). Meu pai e algum irmão mais velho de vez em quando me levavam pra um jogo no Beira-Rio. Lembro nitidamente d’um jogo que o Inter perdeu pro Flamengo com um golaço do Zico, e do empate em 1 x 1 no primeiro jogo da final. E vi na TV a derrota no Maracanã com um gol do Bebeto para o Flamengo. Inter de branco. Inter vice-campeão. 1988 chega com ares olímpicos e democráticos pelas Olimpíadas de Seul e a elaboração de uma nova Constituição depois de 21 anos de ditadura militar, Ayrton Senna ganha seu primeiro titulo mundial de F1e Aurélio Miguel ganha ouro no judô.  O Inter é vice-campeão brasileiro novamente, só que agora com direito a Libertadores. 1989 chegaria com novas perspectivas na finaleira de uma década. Desde sempre ouvi falar em peneiras, ou testes, para entrar nas categorias de base do Inter e do Grêmio. Ou entrar via escolinha, pagando uma mensalidade e treinando duas vezes por semana. Me pilhei. Dois dos meus irmãos mais velhos em algum momento da vida haviam feito testes. Não deu em nada. Meu pai pensou: mais uma chance de finalmente alguém tentar a carreira futebolística e se dar bem na vida, já que ninguém lá em casa esboçava vontade de ser médico ou advogado, carreiras notoriamente visualizadas como grande possibilidade de alguém ser bem sucedido e com status social. Já haviam depositado em mim a chance de alguma mudança de paradigma educacional, me matriculando numa escola particular, já que meus irmãos mais velhos tiveram suas formações educacionais em escolas publicas. Numa outra época, é verdade. Mas em meados dos anos 80 se ouvia falar muito numa espécie de deterioração do ensino público. E as escolas privadas era uma chance na vida de um piá ter bem mais condições de ter uma base educacional formal, a ponto de não precisar fazer um cursinho pré-vestibular e passar tranquilamente em alguma faculdade, se possível a UFRGS. Ou seja, o fator vestibular era a moeda mais usada pra se vender a ideia de se ter um bom ensino fundamental numa escola privada. O fato de formar um cidadão pra vida, quase nunca se ouvia, pelo menos na minha bolha social. E quem não tinha uma pré-disposição aos estudos formais, como eu, com déficit de atenção e ansiedade, hoje entendo isso, mas na época era tido como burro mesmo. E se as chineladas e os castigos não resolvessem, melhor do que supor ver um filho que não gostava de estudar nos moldes formais, sujeito a se tornar um peão, um trabalhador braçal e sofrido, é ver ele pelo menos jogar futebol nas categorias de base de um clube grande, se possível o Inter, com a perspectiva de ser um Falcão da vida. E assim entrei pra escolhinha do Inter, em meio a esse turbilhão de acontecimentos pessoais e sociais. Fim do jogo preliminar. Iria começar o primeiro tempo de um jogo da vida, que não era num tabuleiro, mas era dentro de quatro linhas de cal mal marcadas, onde supostamente eu achava que entendia alguma coisa por mero empirismo até aquela tenra idade, dos 12 pros 13 anos. Era o início de um martírio juvenil que me acompanha até hoje. 


Oly Jr. é cantautor, atuante na cena musical desde 1998. Tem 13 discos lançados até o momento e quatro Prêmios Açorianos de Música (2010 e 2012). Participou de festivais nacionais e internacionais de blues, em coletâneas musicais do gênero; funde milonga com blues, pitadas de capoeira, explorador da técnica do slide, se apresenta ao estilo “one man band”, tocando uma mala de bumbo, gaita de beiço, pandeirola e viola. Reconhecido como um dos mais atuantes e originais da cena blues do Brasil.

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