Memória

Um mestre peripatético

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Um mestre peripatético
Conheci Aníbal Damasceno Ferreira no segundo semestre de 1980. Eu era um menino. Ele, um senhor muito magro e sapientíssimo. Alguns colegas se assustavam com o seu jeito de falar. Outros, ficavam logo seduzidos. Aníbal parecia estar sempre à espera de uma boa conversa. As aulas não deixavam de ser pretexto para o papo que viria depois. Depois de aposentado, passeava pelo centro da cidade e muitas vezes ficava ouvindo nossos debates esportivos no estúdio Cristal, na Rádio Guaíba, um aquário na esquina da rua da Praia com a Caldas Júnior onde se aglomeravam torcedores para ouvir nossas teses e piadas. Aníbal só não gostava que algum repórter tentasse arrancar-lhe alguma frase com um microfone volante. Gostava da sua posição de observador irônico. Fui aluno dele em duas ou três disciplinas de cinema. Depois, viramos colegas. Ao longo dos anos, na Faculdade de Comunicação da PUCRS, a popular Famecos, Aníbal foi de mestre peripatético (como certos gregos antigos, ele adorava falar caminhando ou simplesmente em pé por horas a fio) a quase estátua. Era referência, enciclopédia, apoio e fundamento para quem sabia ouvir ou não resistia à sua sedução. Se não fazia mais era por alternar generosidade com certo mau humor muito no seu estilo. Podia ser deliciosamente rabugento quando se chocava com a mediocridade espetacular. Conversar com ele era ouvir muito sobre Machado de Assis, que só chamava de Machado, e Guimarães Rosa, o Rosa das suas melhores tiradas. Aníbal era um dicionário de imagens, metáforas e citações. Ainda uso três delas em minhas despesas de conversação ou em momentos que exigem uma saída lapidar: “feiura de pajé”, “seis meses embaixo d’água” e “eutanásia pedagógica”. Para Aníbal, mestre do cinema e da literatura, certas pessoas tinham “feiura de pajé”. Por mais que fizessem, não seriam admiradas, aplaudidas, reconhecidas em certos campos fechados ou com estéticas assentadas. Falava assim, com naturalidade absoluta, de alguém… – Esse tem feiura de pajé.  Dito e feito. A pessoa, por mais que fizesse, não decolava. A “feiura de pajé” é uma espécie de falta de carisma que impede o sucesso. Outros, ao contrário, tem dedo de ouro. Aníbal, porém, não tinha uma expressão para designá-los. No Brasil dos modernos, encanta o que Machado de Assis chamava de estilo asmático ou antitético: “O cão ia. A lata saltava como os guizos do arlequim”. Eduardo Bueno, o Peninha, tem dedo de ouro. Quem tinha para Aníbal feiura de pajé? Não me lembro. Eram nomes de ocasião. Foram-se com as páginas amarelas. De onde tirou a expressão? Não sei. Digamos que era seu lado antropólogo. Quando um aluno não mostrava interesse pelas aulas, rodava e assim se eternizava, Aníbal receitava: “eutanásia pedagógica”. Era fazer passar com a nota mínima necessária. O mundo se encarregaria do dito cujo. Assim Aníbal coloria o mundo com suas frases e boutades. Se alguém lhe dizia que pretendia parar de fumar ou esquecer um amor, Aníbal não demorava um minuto para soltar o seu bordão predileto: – Seis meses embaixo d’água.  Quando […]

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