Memórias emocionadas | Nossos Mortos

Flicts

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Flicts

Amar o Ziraldo era uma coisa parecida com a vida.

Havia o pai, a mãe, o vô, as vós, os amigos do colégio, uns parentes. Havia Asterix, Obelix, Ideiafix, Tintim, Goscinny, Uderzo, a Turma do Pererê e o Ziraldo. Tudo era difuso amor infantil. E tinha ainda o Flicts, que saiu quando eu tinha um ano, filho do pasmo da terra é azul, quase junto comigo vendo o homem na lua, eu ali, na frente da TV pra ser testemunha. Era julho de 1969 e um mês depois já existia Flicts, aquela coisa tão linda, tão poética, tão revolucionária – história em quadrinhos sem quadrinhos, sem personagens gente nem personagens bicho. Personagens grafismo.

E aí passa um tempo e Pasquim.

Pra mim, o Pasquim era indissociável da figura do meu pai. Meu pai chegando do IRGA na noitinha, tirando o anel e o relógio de pulso e botando junto com a carteira num nicho da prateleira que ocupava toda uma parede da Sala da TV entulhada de livros. Do lado da carteira, anel e relógio, enfiado entre o primeiro livro e uma das paredes de madeira da estante, ele: o Pasquim. Pasquim que eu, me alfabetizando, já pegava pra ler e não entender, mas desconfiar. E fixar três entre tantos nomes: Millôr, Henfil, Ziraldo.

O mesmo Ziraldo da Turma do Pererê.

Cresci assim.

Vida seguiu, os Piratas do Tietê seriam para o meu Eu jovem adulto o mesmo que o Pasquim fora pro meu pai.

* * *

Na minha vida de músico, uma das maiores alegrias sempre foi música de encomenda. 

Um dia o Roberto Oliveira chega e me pede que eu bote música no libreto que ele tinha escrito baseado… no Flicts! 

Flicts do qual eu tinha me esquecido e que imediatamente voltou todinho, inteiro, tátil.

Apaixonado pelos discos infantis cheios de intérpretes – Os Saltimbancos, Arca de Noé, Plunct Plact Zum – eu fui compondo cada canção pensando em quem eu, em sonho, queria que a interpretasse. Um verdadeiro quem-é-quem da música porto-alegrense de 1997. 

A gente pensa livre, a vida que se encarregue de prender.

Gravamos a base da trilha em três dias, o Arthur de Faria & Seu Conjunto. Cantamos Áurea, eu, e as bonequeiras e bonequeiros da peça (não tenho bem certeza quem, lembro certo da Laura Backes). Peça que era um musical de teatro de Bonecos, montado pelo glorioso Grupo Camaleão, dirigido pelo Roberto. Ganhou montes de prêmios e ficou incríveis DEZ anos em cartaz. Tinha um filhote de elefante em tamanho natural.

Só que a gente, Seu Conjunto, gostou tanto do resultado que pensou: isso tem de virar disco. Tentamos uma graninha no Fumproarte e, na segunda ou terceira tentativa, levamos. Era já a rabeira do milênio, final de 1999. Épico e megalômano, resolvi que não tinha porque não convidar pra participar do disco todas e todos em quem eu tinha pensado quando ia compondo as canções, anos antes. Vai que algum topa.

TODOS toparam.

E aí os milagres: a música que eu tinha composto pensando no Nico Nicolaiewsky estava EXATAMENTE no tom dele. O mesmo com o Nelson Coelho de Castro. Nei Lisboa. Mutuca. Vitor Ramil… 

Entenda: a base já estava gravada há anos, não tinha como mudar o tom. 

Hique Gomez, as mina e os mino cantantes da The Hard Working Band, os guri da Comunidade Nin-Jitsu, Edu K…

O disco sai no primeiro ano do novo milênio e nunca mais para de nos dar alegrias. Anos depois, é relançado pelo selo goiano Allegro. O Arthur de Faria & Seu Conjunto acaba em 2015, depois de 20 anos e cinco discos. Qual nosso trabalho preferido? Ele: Flicts.

No meio disso, eu tinha conhecido ninguém menos que o Menino Maluquinho em pessoa: Antonio Pinto, o filho mais novo do Ziraldo que é uma referência forte pra mim, o maior compositor de trilhas do cinema brasileiro. Se não somos propriamente amigos, inequivocamente nos gostamos um tanto. 

Logo depois, a vida me dá um presente: a irmã de Antônio, primogênita do Ziraldão. Com Daniela Thomas, uma das pessoas mais inteligentes sobre a terra, tenho a imensa alegria de fazer um longa – Insolação, dela e do Felipe Hirsch – e oito peças. Cenários da Dani, trilha minha, direção do Felipe.

A cada tanto, voltava um tema.

Flicts.

– Porque que não teve show do Flicts?

– Olha, o nosso trombonista Julio Rizzo passou 20 anos pedindo pra gente fazer, com o Seu Conjunto. Mas não fazia sentido enquanto a peça estava em cartaz. Depois, esfriou.

Aí, corta para 2023. No meio do ano, Guilherme Thiesen, curador de música do Porto Verão Alegre me pede o que nunca pensei que alguém pediria:

– Será que a Tum Toin Foin faria um show do Flicts?

O resto foi o que foi. 

Quem viu, viu. 

Quem não viu…

E aí o Ziraldo, que a gente achava que era imortal, morreu.

O meu amigo que eu nunca conheci morreu.

Mor-reu.

Flicts foi pro mundo.


Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (15 discos, meia centena de trilhas) e doutorando em literatura brasileira na UFRGS por puro amor desinteressado. Publicou Elis, uma biografia musical (Arquipélago, 2015).

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