Nossos Mortos

As cidades imaginárias de Sandra Pesavento

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As cidades imaginárias de Sandra Pesavento

“Está é a Sandra dos anos 90.” Com esta frase, a professora, historiadora e pesquisadora de sobrenome tapuia Jatahy e italiano Pesavento, recebido do marido Roberto, encerrava uma de suas tantas palestras, na sala Redenção, no Campus Central da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Meus olhos de estudante curiosa contemplavam a metamorfose da historiadora social, com consolidada produção intelectual calcada no materialismo histórico, que reorientava suas investigações para a perspectiva da denominada Nova História Cultural.

Naqueles anos, assistíamos atônitos à queda do Muro de Berlim, à derrocada dos regimes ditos socialistas, aos prognósticos do Fim da História e a uma onda de pessimismo envolvia especialmente a esquerda que nos corredores acadêmicos discutia o giro linguístico, Foucault, à crise das metanarrativas e dos paradigmas teleológicas da modernidade. Marx ruía e com ele a possibilidade de uma teoria dar conta da realidade social. O real, aquele mesmo que pensávamos encontrar atrás das cortinas ideológicas da luta de classes, também se perdera numa quimera, na qual as representações eram tudo que restava para apreender. No meio disso tudo, como se isso não bastasse, a filosofia quis discutir e afirmar que a história não passava de ficção. Tempos duros, aqueles, hein! Só os fortes resistiram. Muitos foram para a direita, essa sim com uma história centenária sem muito risco; outros entregaram-se ao irracionalismo de práticas alternativas; outros enlouqueceram; alguns e algumas ainda estão perdidos por aí. 

Mas ninguém pode negar que a História está mais forte do que nunca.  Quem ousaria, nesse obscuro 2021, dizer que a história não passa de ficção, quando o negacionismo já entrou pela porta e os projetos de retorno a mais recente Ditadura brasileira tomam assento em nossa mesa? Agora, é fácil. Mas quem foi capaz de não só resistir mas se reinventar naqueles anos 1990, última década do século? Sim, ela mesma: Sandra Pesavento.  Com a nova perspectiva teórica, já vigente aqui e em outras praias, vinham também novas problemáticas, novos objetos, novas temáticas, novas abordagens. Nesse leque de possibilidades, Sandra lançou sua mirada para a cidade e, ao lado de outros colegas importantes, reconfigurou os estudos urbanos no Brasil, até então, praticamente apenas investigados por urbanistas, geógrafos, sociólogos, entre outros.  

Porto Alegre se deu bem nessa. A cidade passou a ser esquadrinhada por Sandra e por uma legião de seguidores, entre bolsistas, orientandos,  orientandas e pesquisadores inspirados pelas exposições, livros e escritos produzidos a partir desse período. Não que Porto Alegre não tivesse sido pesquisada e que diversos autores não tenham se dedicado à história de Porto Alegre antes de Sandra. É sabido que ninguém inventa a roda e todo pesquisador parte do conhecimento acumulado por aqueles que vieram antes. No caso da capital dos gaúchos, urbanistas ou historiadores deixaram relevantes contribuições para a compreensão da chamada “evolução urbana” e reler esses trabalhos pode ser interessante para observar as mudanças proporcionadas pela História Cultural e por Sandra Pesavento, sem dúvida a maior incentivadora de estudos sobre Porto Alegre, a partir dos anos 1990. 

Mas o que Sandra Pesavento trouxe de novidade para os estudos sobre a cidade e, especialmente sobre a história, ou histórias no plural, de Porto Alegre? Eis aí um belo objeto de investigação historiográfica a exigir maior fôlego daqueles que desejarem se aventurar nos livros e nos escritos da autora, muitos publicados e disponibilizados gratuitamente online, graças à generosidade da família, ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul e às abnegadas guardiãs da memória de Sandra. Aqui ousarei apontar algumas pistas, limitadas pelo espaço precioso dessa revista. 

A pesquisadora investiu seus estudos de pós-doutoramento na França, especialmente na capital Paris, onde teve contato com autores relevantes para as suas abordagens, a exemplo de Roger Chartier, que trouxe a Porto Alegre para desfrutar do calor da Usina do Gasômetro. Outro autor importante para suas pesquisas foi Marcel Roncayolo, a partir do qual a autora propôs investigar a cidade a partir de seus leitores oficiais e leitores especiais. Os primeiros seriam aqueles sujeitos que produzem a cidade a partir das instâncias administrativas e do poder, particularmente objeto privilegiado de uma determinada perspectiva da história, calcada principalmente na documentação escrita oficial produzida pelo poder público executivo ou legislativo. Nossos arquivos estão repletos de leis, projetos, mapas, atas, correspondências que oferecem informações de fundamental relevância para entender as mudanças das nossas cidades ao longo do tempo. Entretanto, os registros legados pelos detentores do poder, como intendentes ou prefeitos, conselheiros ou vereadores, urbanistas ou servidores públicos permitem apreender uma visão parcial e linear da cidade.

E a cidade sonhada, cantada em prosa e verso, onde ficaria? Para Sandra, havia uma cidade para além do espaço urbano. Justamente aí residia o interesse da autora em buscar outras representações do urbano, especialmente na literatura e nos escritos de cronistas, poetas, escritores que inseriram Porto Alegre nas suas narrativas. Nessas investidas, a pesquisadora ousou trabalhar com documentos pouco usuais para o ofício do historiador e nunca antes mencionados na historiografia de Porto Alegre, mas que permitiram perscrutar as sensibilidades das pessoas do passado, a exemplo de Achylles Porto Alegre e outros escritores. 

Nessa renovação dos documentos, termo mais apropriado que fontes, os jornais também tiveram lugar de destaque nas pesquisas de Sandra, pois estes permitiam, mesmo que do modo enviesado da crônica policial, uma aproximação com o modo de vida de pessoas simples, de escravizados, de libertos, de pobres, de mulheres, de moradores dos becos e vielas da área central de Porto Alegre. Foram os jornais, a exemplo d’A Gazetinha, que permitiram conhecer uma das personagens mais interessantes da história de Porto Alegre, Fausta, uma mulher preta moradora do antigo Beco do Poço, atual Avenida Borges de Medeiros.

Essa perspectiva problematizadora do urbano que fugia de um tempo cronológico linear e que permitia mirar fontes originais e inusitadas, foi articulada teoricamente pela historiadora por meio do estudo do imaginário, a partir do qual importava pensar que o sonhado, o idealizado e o percebido sobre a cidade não se encontravam hierarquicamente abaixo dos denominados acontecimentos e que a imaginação compõe a história da cidade, assim como o vivido. Nesse sentido, através dos aspectos sensíveis do urbano, Sandra Pesavento lançou as bases para a investigação do imaginário na história brasileira e para a consideração das formas de pensar, de ver e de conceber o mundo na composição do todo social. 

Na vertente da História Cultural, hoje já não tão nova, nenhum documento do passado ou temática deve ser desconsiderada para a construção do conhecimento histórico. Guiada por esse princípio, criticado por alguns colegas, Sandra Pesavento acolheu e estimulou a investigação de objetos de estudos considerados heterodoxos e não atinentes à disciplina, naqueles tempos, como o carnaval, os museus, o patrimônio, as festas, o cinema, a publicidade, a fotografia, os hospícios, a psiquiatria, a família, os bandidos, a polícia, entre tantos temas orientados por ela.

Acredito que a atenção para os estudos urbanos e para a história de Porto Alegre, nos anos 1990, teve um componente incentivador para Sandra Pesavento e tantos outros pesquisadores, entre os quais me incluo. Aquela década marcou também a gestão da cidade pela Administração Popular, mantida no poder por quase 20 anos. A efervescência cultural, o ambiente político propício para pensar e para refletir sobre Porto Alegre contribuiu para um desejo de produzir conhecimento histórico sobre a cidade e, por outro lado, ultrapassou os muros da universidade e alcançou um público mais amplo. São exemplos disso a exposição que logo virou livro intitulada Porto Alegre: espaços e vivências, organizada por Sandra Pesavento à frente do Museu da UFRGS e a exposição Porto Alegre Caricata, desta vez organizada com a equipe do Museu de Porto Alegre Joaquim José Felizardo.  

Por incrível que pareça, a década que fora marcada pela propalada crise da história, também foi aquela em que a universidade – especialmente através de Sandra Pesavento, de suas pesquisas e de seus inúmeros admiradores – com a população porto-alegrense ousou sonhar com uma outra Porto Alegre possível. Se por enquanto o futuro é incerto, quem sabe ao reinventar o passado sob inspiração de Sandra, possamos alimentar as nossas esperanças de dias melhores. 


Zita Possamai é historiadora, professora da UFRGS, autora de Nos Bastidores do Museu (Est Edições), organizadora de Leituras da Cidade (Evangraf) e de diversos artigos sobre cidade, museus e patrimônio.

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