Buona fortuna
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Contardo Calligaris tinha aquela forma de acompanhar a gente na leveza, com humor, e ao mesmo tempo apontando o valioso. Eu estava nos preparativos da viagem para Milão, encontro profissional grande, colegas da América, da Europa. Falei com ele, Milão era sua terra e eu ia pela primeira vez.
A recomendação do Contardo não foi em direção a algo da psicanálise no mundo. Foi: “Lucia não te esquece, o principal é vocês chegarem lá e não deixar de pisar nas bolas do touro, viu?” Risada de parte a parte, o que é isso? “Galeria Vittorio Emanuelle, vocês procuram o touro no chão, acham o lugar, aí coloca o calcanhar e gira!”
E lá fomos nós para Milão, cinco dias de chuva torrencial desabando pela cidade, mas que não desanimou aquela pequena fila indiana de guarda-chuvas brasileiros no entardecer por Brera, Santa Ceia, Pietà, Duomo. O touro foi, claro, o primeiro dia, a primeira coisa. Galeria imponente, maravilhosa, cruzamos procurando, estava ainda vazia, recém despertando. Tinha na cabeça um mosaico grande, vistoso e central, mas não encontrava. Como assim, entendi mal? Onde está? Simplesmente não achava!
Até que uma “bailarina” turista fez um giro assim do nada, então eu vi. O tourinho, pequeno… Lindo brasão, e no lugar marcado um cavo arredondado na pedra pelos milhares de giros – três para cada um, é preciso, para a boa sorte. Aliviada, achei o lugar e fiz a dança.
Por que, das lembranças, essa é a que veio parar no papel, tão trivial, tendo tantas outras da vida, da clínica, do convívio, da transmissão e mesmo da perda? Faço a hipótese: porque brinca sutilmente com essa dimensão de desidealização com a qual ele nos brindava, nos transmitia, nos formava de muitas maneiras. Não é no grandioso e sim no que nos faz desejar, no fazer nossos achados, nos abrindo lugares novos e confiança.
Noutra vez, eu preparando o primeiro trabalho para apresentar em congresso além-mar, ele me ajudando: “Lucia, não vai lá recitar Lacan pra francês, hein? Vai falar da tua experiência. É isso que importa levar”.
Ah, Contardo, sim, me deste buona fortuna. Na vida.
Lucia Serrano Pereira, psicanalista, membro da APPOA, autora de estudos sobre Machado de Assis: Um narrador incerto – Entre o estranho e o familiar e O conto machadiano – Uma experiência de vertigem, ambos pela editora Cia. de Freud.