Memórias emocionadas | Nossos Mortos

É Flicts!

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É Flicts! Ziraldo. Foto: Tomaz Silva/ABr

Googleio por aqui e não encontro o que quero. Sei que Ziraldo esteve na 52ª Feira do Livro de Porto Alegre, nos encontros com o saudoso Professor Ostermann, mas não foi daquela vez que participei como ouvinte de um bate-papo com ele. Sei que foi ali por 2011, nem certeza se na Feira do Livro sequer, mas no espaço Cultural Santander (hoje Farol), certamente. E lembro disso por uma dica que ele deu no encontro, pra mim utilíssima. Pois foi ali que encontrei aquela figura carismática, devidamente trajada com um de seus folclóricos coletes, para um bate-papo inteligente e divertido, abordando desde sua extensíssima obra a questões culturais do momento. 

Pra quem é da minha geração, que não só cresceu acompanhando a sua obra infantil (O menino maluquinho, Flicts, O menino marrom, a ilustração de Chapeuzinho amarelo, de Chico Buarque), mas espichou um olhar para trás, buscando sua trajetória no Pasquim e, mais adiante, em Bundas, em 1999 (“Quem mostrou a bunda em Caras não mostrará a cara em Bundas”), uma paródia à revista de sub-celebridades, ou em O Pasquim21, de vida curta, uma tentativa de reviver os momentos gloriosos do semanário carioca, a emoção era grande.

Pois foi ali naquele espaço que presenciei todo o vigor e a inteligência de um verdadeiro ícone da cultura nacional. E das coisas que mais me ficaram na memória, além do humor, é claro, foi a sua generosidade. Perguntado sobre o que gostaria de propiciar ao povo brasileiro, se pudesse, respondeu prontamente, “pererecas”. E antes que o termo possa estranhar a alguns, pelo chiste inusitado, na verdade era o inocente desejo de que um povo desdentado pudesse voltar a sorrir, melhorando sua autoestima, através do uso de uma meia dentadura. 

E mais ainda, quando questionado sobre um conselho aos escritores ou aspirantes a, afirmou: “anotem tudo o que vier à mente de vocês, para não esquecerem depois”. E citou como exemplo um caso clássico acontecido na redação do ipanemense Pasquim, com redação em Botafogo. Um belo dia, Jaguar teria contado a todos que tivera uma ideia revolucionária, que mudaria o mundo. E para anunciá-la, esperou que todos se reunissem no mezanino do espaço, quando, para espanto de todos, num anticlímax, afirmou, cabisbaixo: “esqueci”.

Verdade ou não, regado a whisky ou não, aquele pensamento que ia mudar o mundo se esvanesceu, mas ficou na minha memória o ensinamento como um bordão. Anotar o que vem à mente me ajudou a compor o meu segundo livro, em 2012, por isso a certeza da lembrança. Mas principalmente me ensinou a guardar ideias interessantes, esperando a forma ideal, e descartar posteriormente bobagens aparentemente inteligentes, sabendo que o espaço de criação às vezes depende de um lampejo, mas não apenas disso.

E esse é o papel do artista, iluminar, a partir de seus insights, o mundo, fazer com que vejamos aquilo que o que os outros não veem. E são poucos, na verdade, os que o conseguem, Ziraldo é um deles. E não bastasse com palavras, tanto para adultos quanto para crianças, também com imagens ou cores ele imaginava o mundo. E pra isso chegou a criar uma que a ninguém ocorreu, por óbvia em sua singularidade, Flicts.

E é com ela que hoje ele aquarela outro plano, se houver. Neste aqui, com certeza já deixou sua marca, muito além do arco-íris, em todos os que souberam privar com sua pessoa ou com sua obra: a arte de rir da vida, de pincelá-la como bem quiser, desde que com emoção.


Breno Serafini é doutor em Letras pela UFRGS e autor dos livros Mosaico Laico (CBJE, 2010), Geração Pixel (Edições do Autor, 2012), Millôres Dias Virão (Libretos, 2013), Picassos Falsos (Buqui, 2014), Bichos de Todos os Reinos (Edições do Autor, 2015 – ilustrado por Moa); Colloríssimo – a coroação e o destronamento de Collor segundo Verissimo (AGE, 2016); e POAlaroides urbanas – uma ode visupoética a Porto Alegre (Editora Parangolé, 2022).

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