Nossos Mortos

Enid Backes: constelação e cometa

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Enid Backes: constelação e cometa Enid Backes. Foto: Nino Backes

Lembro com clareza dela ajeitando o papel pardo sobre a mesa e me mostrando o movimento que devia fazer com a peneira para que a farinha se depositasse ali formando um pequeno Everest, o qual eu adorava amassar o topo com os dedos formando uma pequena cratera. Foi a partir desse gesto, de me incluir na rotina dela, que tomei gosto pela cozinha, profissão que mais velho resolvi exercer e que criou em mim um laço indelével com ela. Minha vó tinha essa capacidade de plantar pequenas sementes que em algum momento brotavam nas pessoas que passavam pela sua vida.

Dela também herdei uma curiosidade quase inesgotável sobre todo e qualquer assunto. Quem teve o privilégio de conversar com ela sabe que sentar a seu lado seria entrar em um portal que poderia durar horas a fio percorrendo os mais diversos tópicos, entre os quais havia uma clara predileção por história, política e feminismo. Apesar de toda sua trajetória, nunca se colocou como fiel da balança, sempre gostou de escutar as pessoas e seus pontos de vista e aplicava a dialética sempre que possível. Tudo para ela era social, nada se construía sozinho.

Nossa relação se construiu na base da troca: ela me ensinava a cozinhar, a ser pontual, a ser solidário, e eu ensinava o valor do afeto, demandava o meu quinhão de carinho. Sem ter outra opção ela foi lentamente perdendo uma certa dureza que carregava consigo e foi indo cada vez mais em direção a um endulzamiento. Carinho passou de artigo raro para abundância. Foi essa, inclusive, uma das suas últimas palavras já no leito do hospital, onde ao receber o toque cândido de minha mãe em sua cabeça lhe disse: carinho, carinho, carinho!

Foi muito bonito pra mim ver lentamente essa inversão de papéis: conforme ela foi envelhecendo e ficando mais dependente, quem passou a cuidar e a cozinhar pra ela fui eu. Percebi como se um ciclo fosse se fechando, como um ouroboros de amor e cuidado. Dentro dessa beleza foi desafiador, também, ver alguém que a gente ama em uma posição de fragilidade, e perceber a desconstrução daquela imagem de uma pessoa forte e independente foi um processo de lenta assimilação. Minha vó foi talvez a mais dura crítica gastronômica que já enfrentei, pois com o passar dos anos teve maior dificuldade para mastigar alguns alimentos, precisando de texturas suaves, assim como criou um aguçado paladar que notava qualquer sutil diferença no sabor, percebendo qualquer pequena pitada de sal ou de pimenta. 

Depois de quase quarenta anos em Porto Alegre decidiu que era hora de um novo capítulo, resolveu então subir a serra e se instalou em Nova Petrópolis, onde passou a ter como vista diária uma TV verde de polegadas infinitas. Pela janela do seu quarto, um pedaço de mata nativa trazia como companhia quase que diária saíras, tucanos, aracuãs e até mesmo uma família de bugios, criando seu National Geographic particular. Viveu seus últimos anos estimulando seus sentidos com a vista dos animais, as comidas minuciosamente preparadas, o gosto musical eclético que ia do jazz à música clássica passando pela MPB e o que mais estivesse ao alcance. Lembro sempre de ela me perguntar: que música tu tem ouvido ultimamente? Isso sem nunca perder o interesse por saber das notícias do mundo, se posicionar e seguir colaborando na medida do possível na partilha de seu conhecimento.

Entretanto nem tudo são flores, existia um lado rigoroso que nunca a abandonou, uma necessidade de controle que aumentou conforme a sua mobilidade diminuiu. Um dos apelidos dela na família era “Generala” pela forma como comandava tudo. As coisas tinham que ser do jeito que ela queria, senão não eram boas o suficiente. Levava isso tão a sério que na minha última ida à serra para cuidar dela, nem bem um mês antes, ela me disse: “acho que eu vou em agosto”. Dito e feito, até no fim da vida teve as coisas conforme o seu gosto. Imagino que tenha sido essa potência que ela carregava dentro de si que fez com que mesmo com a perda precoce do meu avô ela tivesse forças pra seguir em frente e não olhar pra trás, iniciando ali uma trajetória na vida pública, atuando na luta pela redemocratização do país, pelos direitos humanos, pelo meio ambiente e pelos direitos das mulheres, ao mesmo tempo que criava, junto da minha bisavó, seus sete filhos, à época ainda pequenos, que lhe trouxeram quinze netos e agora quase dez bisnetos. 

A gente só consegue ter dimensão do tamanho das coisas quando elas chegam a um fim, só agora eu consigo ter noção do que a minha avó foi nesses noventa e dois anos de vida. Enxergo isso muito mais pelos relatos que vem das pessoas que foram tocadas por ela durante a sua trajetória como mãe, socióloga, sindicalista, feminista e mais tantas outras facetas que não caberiam nessas escassas linha onde tento contemplar alguém tão grande e importante pra mim. 

Enid Backes. Foto: Nino Backes

Enid Backes nasceu Diva. A mais velha de sete irmãos teve sete filhos e eu, como sétimo neto, gostaria de escrever algumas palavras que vão tentar fazer jus e sintetizar a sua história.

De uma longa história em Santa Cruz do Sul até a vinda para Porto Alegre há um corte temporal que ocorre com a perda precoce do seu marido, ficando assim viúva com os filhos para criar, um cenário delicado que, em diversas oportunidades, provoca uma desestruturação de uma família, mas me parece que foi esse momento que gerou a consolidação de um núcleo duro que trouxe estabilidade para esse microcosmos. Minha avó precisou ser – e foi – muito forte, não deixou se abater pelo luto, precisava seguir em frente, contou nesse momento com a ajuda de mulheres, sua mãe e suas irmãs lhe emprestaram empatia, abrigo, escuta e diversos outros apoios que é algo típico das relações femininas, acho que isso ficou gravado nela, a importância de estar presente e ser apoiada para outras mulheres.

Ela decidiu ir encarar o mundo, trabalhou como professora, se formou socióloga e adentrou o mundo da política através dos movimentos sociais de base que fundaram o PT, atuou nos movimentos sindicalistas e esteve presente no processo de redemocratização do país durante os nefastos anos da ditadura militar. Mas o lugar onde ela mais se identificou e se sentiu confortável talvez tenha sido o movimento feminista, e é fácil entender o porquê. Aquela semente que surgiu num momento trágico germinou e começou a dar frutos. Ela entendeu, então, que deveria começar a espalhar algumas sementes por aí e me parece ter sido extremamente bem sucedida, pois são diversas as árvores espalhadas pelo RS e até mesmo pelo Brasil afora.

Quando uma pessoa é extremamente curiosa isso faz com que ela tenha uma infinidade de interesses e de facetas da sua vida, é então uma tarefa difícil e delicada criar um recorte que abarque o universo que uma pessoa é, e é assim que gosto de pensar e lembrar de minha avó, como um universo que interagiu com diversos astros, que para alguns foi estrela e para outros foi cometa, que fez parte de constelações, galáxias e que hoje está aqui entre nós como poeira estelar, olhando de longe todas as suas árvores.

Foto: Nino Backes


Nino Backes, neto da socióloga e feminista Enid Backes

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