Nossos Mortos

Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida

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Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida Discos de Rita Lee - Reprodução

Como vai? Tudo bem
Apesar, contudo, todavia, mas, porém
As águas vão rolar, não vou chorar
Se por acaso morrer do coração
É sinal que amei demais

Conheci pessoalmente a Rita Lee lá pelos anos 1990, quando ela apareceu por aqui com o inusitado show “Bossa em Roll!”.  Para quem, como eu, acompanhava sua trajetória desde o tempo dos Mutantes, aquele novo trabalho despertava a curiosidade. Que história é essa? A roqueira de carteirinha, acostumada aos grandes shows com bandas pesadas, de repente resolve sair por aí com um trabalho acústico, tipo “banquinho e violão”, oi…? 

Para colocar mais lenha nas dúvidas, circulava que ela queria dar um tempo na parceria com Roberto de Carvalho, seu marido. Claro que este “dar um tempo na parceria” gerou aquela fofoca básica, tipo ‘eles estavam se separando’ e por aí afora. Tudo que rolava na mídia ajudou a aumentar a minha expectativa sobre o show. 

Quando ela aportou por aqui, recebi a ligação de um amigo com quem trabalhei no Estúdio Vice-Versa, hoje Trama, em São Paulo, me convidando para assistir o show; ele estava na turnê como técnico de som. Fiquei triplamente feliz com o convite. Primeiro por reencontrá-lo, fazia alguns anos que não nos víamos; segundo, por ter a oportunidade de ouvir o que ela estava aprontando musicalmente; e, quem sabe, conhecer a rainha.  

Na noite do espetáculo, lá estava eu sentado num lugar privilegiado junto à mesa de som, colocando o papo em dia e pronto para fazer muitas perguntas sobre aquele show. Quando fui começar o interrogatório ouvi o terceiro sinal e fiquei quieto. A partir daquele momento, a atenção do técnico de som deveria ser total. 

Primeiro, ele rodou os áudios dos patrocinadores e um segundo áudio com as instruções de praxe para o público. Em seguida, com os artistas no palco, abrir o som na mesa e deixar o show rolar. Não teve jeito, engoli a ansiedade e as perguntas que insistiam em me cutucar.  

Naqueles poucos minutos, entre as palmas do púbico que superlotava o teatro e os dois músicos que se ajeitam nos seus lugares, veio a imagem daquela loirinha linda com um coração pintado no rosto, acompanhando o Gilberto Gil no festival da TV Record de 1967. De repente, o som dos primeiros acordes dos dois violões de cordas de aço me trouxe de volta para a realidade, e todas as perguntas que me fazia antes do inusitado show acústico desapareceram quando ouvi sua doce voz cantando: 

Venha me beijar

Meu doce vampiro

Uô, uô, uh

Na luz do luar

Daquele momento em diante, ela e o violonista Alexandre Fontanetti exploraram todos os meus limites e, provavelmente, ela os seus, ao subverter sua trajetória e poetizar cada um dos seus momentos. Rita, naquele espetacular show, me mostrou que eles – os limites – existem se você os colocar na sua frente.

Me cansei de lero-lero
Dá licença, mas eu vou sair do sério
Quero mais saúde
Me cansei de escutar opiniões
De como ter um mundo melhor

Literalmente, ela me levou para uma viagem lisérgica através de um repertório que, junto com suas conhecidas canções, estavam “Every Breath You Take”, do Sting; Cry me a river”, de Arthur Hamilton; “It’s Only Rock ‘N’ Roll (But I Like It)“, de Jagger/Richards, que ela adaptou para It’s Only Bossa ‘N’ Roll; e The Fool On The Hill, de Lennon/McCartney.

Mas o que eu não sabia, ao chegar ao final do show, era que a maior das emoções estava por vir. Depois de desligar a mesa e checar se o pessoal do palco tinha recolhido os microfones e guardado os violões nos seus devidos estojos, meu amigo me levou para conhecê-la no seu exotérico camarim; um lugar para muito poucos. 

Eu ainda estava naquele momento transe, meio atrapalhado com minhas emoções. Conversei brevemente com ela e logo saí do seu espaço para deixá-la à vontade. Na verdade, ela estava muito à vontade, quem não estava era eu. 

Fiquei ainda um tempo no palco conversando com o pessoal do som e luz, quando ela passou por nós e disse: “Tá porra, tô com fome! Traz teu amigo junto e vamos comer.”  Foi isso mesmo, rolou aquele momento “chega mais”.

Fomos para o Al Dente, um restaurante italiano bem conhecido nos anos 1980/90, localizado na esquina das ruas Mata Bacelar e Maryland.

Mesa longa já posta esperava pelo grupo. Aguardo que as pessoas se acomodem e literalmente com o …virado pra lua, sento frente a frente com ela. O papo rolou solto, principalmente quando começamos a falar de música e ela se deu conta que eu era músico. Pra já, eu fazia parte da turma.  

Histórias andando pra lá e pra cá, mas ela estava com fome e reclamou da demora da comida: “Orra meu! Cadê meu rango?” 

Quando eu achava que nada mais surpreendente podia acontecer, veio a cereja do bolo. Se bem me lembro, era o Alexandre Fontanetti que estava sentado ao seu lado. Quando o jantar foi servido ele olhou para o dela e disse: “Parece bom, deixa eu provar.” Ela olhou para ele e devolveu em alto e bom som: “NÃO!” Cuspiu no prato e soltou: “Esse é meu rango. Come o teu, porra!” Logo a seguir, levantou o prato e perguntou: “Tá a fim?”. 

Eu não sabia se ria ou se chorava. Mas depois daquele momento RITA LEE, eu percebi que ali na minha frente, estava uma mulher que não tinha medo de ser o que era. Uma pessoa rara, uma artista maior, alguém que jamais vou esquecer! Ela foi “nem luxo, nem lixo. Mas é Imortal”.

Obrigado, Rita.


Ayres Potthoff – Graduado em flauta pela UFRGS e Mestre em Flauta pela UFRJ. É um dos fundadores da Associação Brasileira de Flautistas, organizador dos Festivais Internacionais de Flautistas do Rio de Janeiro e Porto Alegre. Foi Diretor Executivo da Orquestra de Câmara Theatro São Pedro, grupo que fundou em 1985. Com frequência se apresenta ao lado de Daniel Wolff (violão) e Rodrigo Alquati (cello) em países como Estados Unidos, França, Alemanha, Hungria, Noruega, República Tcheca, Peru, Equador, Portugal e Canadá. 

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