Nossos Mortos

“Mas eis que chega a roda viva …”

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“Mas eis que chega a roda viva …” Zé Celso | Foto: Garapa - Coletivo Multimídia

“Mas eis que chega a roda viva” … eis que se vai José Celso.

Era o ano de 1968. Um ano, por um lado, de muitas manifestações políticas, por outro, muita repressão. Muita arte engajada, tropicalismo e, na mesma proporção, censura.  Rebeliões e violência do estado. Um ano, aqui e no mundo, de paixões e muita música, cinema e teatro. Eu tinha 17 anos, cursava o ensino médio, o Curso Clássico, em uma grande escola pública em Porto Alegre, e me preparava para fazer o vestibular para as Ciências Sociais. Já tinha certeza − a certeza e onipotência que só os jovens têm − do que queria fazer da vida: derrubar a ditadura e mudar o mundo. 

Um tempo de profundas rupturas. Abandonar sonhos infantis e viver uma grande utopia. Outra estética constitui-se em meu ser. Romper com o primeiro namorado, o fim de reuniões dançantes no sábado à tarde, onde se dançava de rosto colado ao som da Jovem Guarda e iê-iê-iê. Da música às declarações de eterno amor e discussões sobre quem decidiria o comprimento da minha saia, tudo aquilo, de repente, ficou pobre, mesquinho, ridículo. Pequeno-burguês. Tudo estava no roteiro do Gorki, não tinha visto a peça ainda, mas tinha lido e sabia diálogos inteiros. O mundo era um palco, tínhamos que escolher nossos papéis. 

Naquele fatídico e emblemático ano de 1968, em maio, o estudante secundarista Edson Luís, que devia ter a minha idade, foi assassinado em uma manifestação no Rio.  Também em maio, estudantes, intelectuais que eu lia, e operários montaram barricadas em Paris e enfrentaram a polícia. Em junho, no Rio, houve a passeata dos Cem Mil.    

Em Porto Alegre, passeatas de protesto contra a ditadura organizadas pela extinta UNE, a UNE Livre, à revelia de permissão, acontecia cada vez com mais frequência no centro da cidade. Eu conhecia alguns alunos da Universidade, com eles participava das manifestações. Bradávamos “Abaixo a Ditadura”, “Arroz, Feijão e Pão” e corríamos dos brigadianos que colocavam a cavalaria e cassetetes em cima da gente até nos dispersarmos. Nos bolsos, bolinhas de gude para jogar na rua e apostar que os cavalos cairiam. Nunca tive coragem de usar minha arma, as bolinhas, e também nunca vi um cavalo cair. Só vi colegas apanharem de cassetete e prisões sendo feitas. Apertava as bolinhas de vidro nos bolsos, acreditava que a minha proteção estava nelas. A Ditadura que até então se fazia de envergonhada, despiu-se de qualquer vestígio de eventual pudor. 

Ainda era 1968, a peça de Chico Buarque Roda Viva, com direção de José Celso Martinez Correa, veio a Porto Alegre. Meu pai, que adorava teatro e tinha uma prateleira em sua biblioteca com peças teatrais, comprou com antecedência as entradas para a estreia da peça no Teatro Leopoldina. Roda Viva, a música, tinha sido premiada no Festival da MPB no ano anterior e estava no long play Chico Buarque de Holanda Volume 3. Eu tinha todos os três discos do Chico e nada poderia ser mais maravilhoso para mim do que ir com meu pai ao teatro, sobretudo para assistir a uma peça escrita e musicada pelo Chico. 

Com frequência íamos ao teatro juntos. No ano anterior, tinha aberto o Teatro de Arena, nos altos do viaduto. Tínhamos assistido a todas as peças que a censura deixou encenar, lembro de O Santo Inquérito e Dois perdidos em uma noite suja de Plínio Marcos. No teatro São Pedro, Brecht, Os Fuzis da Senhora Carrar. No teatro Leopoldina, quando inaugurou, alguns anos antes, tinha ido com minha vó assistir My Fair Lady.  

Éramos, eu e meu pai, ávidos consumidores de teatro, cinema, poesia e música, enfim literatura em todas as suas formas e por aí, distanciávamo-nos de dramas domésticos e íamos tecendo uma forte cumplicidade. Mundos ameaçados. Cada vez mais perigosas as manifestações de rua, o teatro que fazia pensar permanecia, em sua efervescência criativa, um reduto do engajamento político. A arte era a nossa última barricada, onde eu e meu pai encontrávamos conforto. Nos escondíamos da família que se esfacelava, de minha casa que enlouquecia, do terror da nova leva dos de expurgos de professores na universidade que se anunciava e das comissões de inquérito que ameaçavam meu pai cotidianamente. Enfim, como crianças que fecham os olhos e pensam estar escondidas, nos escondíamos da violência que se instaurara no país e do prenúncio de um novo golpe, dentro do golpe – falava-se em mais um Ato Institucional.

Era o dia 3 de outubro de 1968, meu pai vestiu terno e gravata; eu, meu melhor vestido, meias de nylon, saltinho, e juntei meus cabelos no alto da cabeça em um coque cheio de laquê − contente por parecer mais velha para ir ao teatro assistir ao Roda Vida. Chegamos de táxi no Teatro Leopoldina, na avenida Independência. Mal descemos do carro, percebia-se uma grande confusão, as paredes estavam pichadas com ameaças e dizeres do tipo “Fora comunas!” assinado CCC, o já conhecido Comando de Caça a Comunistas. Uma pequena multidão. Um burburinho do público que veio assistir à peça na expectativa que as portas do teatro se abrissem.  Repórteres que vieram cobrir a estreia da peça. Pelo menos duas dezenas de homens visivelmente armados, alguns encapuzados, entregavam panfletos. Eram um grupo de paramilitares, os milicianos da época, nós os chamávamos “ratos”.  Avisavam que a estreia da Roda Vida havia sido suspensa, aparentemente por decisão desses senhores. Os panfletos eram ameaçadores e diziam alguma coisa sobre que naquela noite preservariam o teatro e a plateia, só estavam avisando, e recomendavam que voltássemos para casa sem arruaças. Soubemos pelo porteiro que o cenário da peça tinha sido quebrado pelos brutamontes.

Meu pai me puxou pelo braço e rapidamente entramos novamente no mesmo táxi que tinha nos trazido. Nas mãos, um panfleto que li alto para meu pai. O motorista ouvindo comentou: “Esses comunistas, só criam problemas…”  Quis explicar que ali não havia comunistas. Meu pai fez um sinal discreto para eu me calar. Calados e frustrados voltamos para casa. Coloquei o disco do Chico, cantei alto Roda Viva, sentindo teimosas lágrimas escorrerem pelo meu rosto:

Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo que cresceu

No dia seguinte soubemos que aqueles homens de preto, os CCC, tinham espancado e humilhado todo o elenco da peça e raptado os dois atores principais, Elizabeth Gasper e Zelão, os ameaçaram e, depois de rodarem em um furgão preto algumas horas com eles de olhos vendados dizendo que os fuzilariam, os abandonaram em uma mata na Restinga. A peça Roda Viva foi cancelada em Porto Alegre.

Em 13 de dezembro de 1968 foi decretado o AI 5. Fatídico e emblemático ano. O terror se instaurara. Até então vivíamos tempos sombrios, a partir daquele dezembro, entramos em um longo túnel sem luz alguma. Em algum lugar dessa longa travessia pela escuridão ainda ecoava:

A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá


Ondina Fachel Leal é antropóloga, mas antes de estudar antropologia teve formação e dedicou-se à fotografia, na Califórnia dos anos 70.

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