Nossos Mortos

O dia em que quase matei Contardo Calligaris

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O dia em que quase matei Contardo Calligaris

Das características que mais admirava no Contardo, uma delas era o gosto em atender psicóticos. Ao longo dos anos ele foi um interlocutor especial, alguém com quem podia compartilhar a curiosidade, o entusiasmo e as angústias que a clínica com a psicose provoca. 

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Das características que mais admirava no Contardo, uma delas era o gosto em atender psicóticos. Ao longo dos anos ele foi um interlocutor especial, alguém com quem podia compartilhar a curiosidade, o entusiasmo e as angústias que a clínica com a psicose provoca. 

No final dos anos 80, eu havia participado do seminário que ele ministrou e que resultou no livro Introdução a uma clínica diferencial das psicoses, seminário que teve uma grande importância por desmistificar, para uma geração psi que estava chegando, a ideia de que a psicose era coisa só para psiquiatras. Na época, eu também participava da Reforma Psiquiátrica e da luta antimanicomial, nas quais a psicanálise tinha lugar de destaque. Contardo tinha interesse em organizar em Porto Alegre apresentações de pacientes, prática que Lacan manteve ao longo de sua vida em Paris. Tentamos então organizar essa atividade no Hospital Psiquiátrico São Pedro, onde eu dava aulas na Residência, mas as resistências da psiquiatria tradicional eram muito fortes nesses tempos e impediram que isso acontecesse. 

A alternativa que surgiu foi levar a ideia para outro lugar, onde, além do consultório, eu também trabalhava, o Hospital Colônia Itapoã, hospital psiquiátrico que fora o antigo leprosário e ficava longe de Porto Alegre, a uma hora e pouco de carro. Convidei Contardo para ir até lá conhecer a equipe e o trabalho que lá se fazia. Ele prontamente aceitou. 

Acontece que, no meio do caminho, descobrimos que uma forte tempestade na véspera havia transformado a estrada, que em sua grande parte era de terra, num verdadeiro lamaçal. Numa das curvas, acabei perdendo a direção do carro, que sambou pra lá e pra cá, deslizou de lado e, desgovernado, foi em direção a um enorme barranco que bordejava a estrada. Num ato reflexo, segurei o Contardo para que ele não batesse de cara no vidro – do mesmo jeito que meu pai fazia numa freada brusca, quando eu era menina e ainda não havia cinto de segurança. Quando, pelo que pareceu um milagre, o carro parou, me vi segurando a perna de meu analista (sim, me analisava com ele). 

Eu tremia tanto e meu coração batia tão intensamente na boca, que só consegui dizer: “O que quase aconteceu!…” Pensei – e disse a ele – que, se algo de pior acontecesse, eu seria linchada e esfolada em praça pública pelo mundo psicanalítico – e com toda a razão! Respirei fundo, busquei retomar as minhas forças para voltar a dirigir e seguimos na estrada com extremo cuidado. Chegando ao nosso destino, fomos recebidos como verdadeiros heróis por termos conseguido chegar. O ônibus que costumava levar os profissionais para lá tinha simplesmente desistido da viagem. Revelaram-nos, então, que quando chovia muito era frequente haver desastres na estrada, colegas já haviam inclusive capotado. 

Apesar do heroísmo, porém, nossa façanha infelizmente não deu certo e tampouco no HCI foi possível fazer as apresentações. Mas encontramos outros espaços onde Contardo conseguiu nos transmitir a sua forma singular de escuta na psicose, tomando o caso não pela negatividade – como não sendo uma neurose, mas na positividade – na sua forma peculiar de existência, o que faz uma diferença fundamental na clínica das psicoses!

Ao longo dos anos, de vez em quando Contardo lembrava dessa nossa aventura e ríamos muito! Na última vez em que estivemos juntos, em dezembro de 2019, num delicioso encontro de trabalho e confraternização em Itatiaia, Contardo contou em detalhes a nossa interessante história para os amigos que não a conheciam. Contou com aquela risada larga, gostosa e divertida, contagiando a todos, que também riram muito… Só muito depois eu viria a descobrir que naquela noite ele já sabia do câncer que o levaria. Mesmo assim, estava ali conosco, alegremente brindando à vida! E nós agora brindemos a ele!


Rosane Monteiro Ramalho – Psicanalista, membro da APPOA

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