Nossos Mortos

Paulo Jazz Moreira

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Paulo Jazz Moreira Paulo Moreira. Foto: Daisson Flach

O nome dele poderia ser Paulo Jazz Moreira. Com 40 anos de jornalismo, construiu uma trajetória rica em desafios e realizações, sempre presenteando seu público com muita informação sobre artistas e suas obras. Uma enciclopédia cabia inteirinha em sua memória. Tornou-se uma referência do jazz e da cena de música instrumental em Porto Alegre. Extrapolou fronteiras, em entrevistas com grandes nomes internacionais. Em sua caminhada, foi construindo amizades de verdade. Este virginiano inteligente e persistente foi igualmente incansável na profissão e na luta contra uma doença renal, que enfrentou com galhardia e bom humor durante 19 anos. Resistente, resiliente, seguiu atento, sabendo tudo, até fechar os olhos definitivamente no dia 17 de dezembro.

Seu legado está vivo entre milhares de pessoas. Muitas tiveram a felicidade de conviver com esta figura rara, um cara cerebral ao mesmo tempo muito afetivo. Logo depois de sua morte, as redes sociais davam conta de uma infinidade de textos elogiosos, saudosos, a maioria reconhecendo sua importância para a música, mesmo sem tocar um instrumento. 

Paulinho, como era carinhosamente conhecido, foi também generoso ao nos deixar considerável parte de suas memórias, registradas ainda em 2023, ao longo de sete meses, em textos gravados e transcritos, outros digitados por ele mesmo. Tudo ocorria em três sessões semanais, que às vezes duravam mais de cinco horas, tempo talvez demasiado prolongado para qualquer pessoa que estivesse em uma condição debilitada. Para ele, não.

Foi no final de junho que ele se entusiasmou com a disposição de dois amigos de apoiá-lo a realizar algo que já lhe havia sido sugerido várias vezes: escrever um livro com suas histórias. Paulinho sempre lembrava que a primeira pessoa a sugerir a obra foi o também jornalista e amigo Juarez Fonseca. A iniciativa, agora, veio de um amigo de infância, João Cesar Nazário, conhecido como Alemão, que esteve junto com Paulinho em muitas aventuras de adolescência. O Alemão Nazário convidou uma amiga em comum dos dois, Iria Pedrazzi, jornalista que aqui escreve.

Paulinho e Hermeto Paschoal. Foto: Arquivo pessoal

Meu depoimento sobre esses sete meses recheados de emoção, dedicados à construção do livro, vai ficar na minha lembrança para sempre. Estávamos cientes de que corríamos contra o tempo, porque as condições de saúde do Paulinho eram delicadas. Num misto de amor, profissionalismo e dedicação, nós três mais a Clô Barcellos, editora, nos lançamos em um trabalho desafiador, prazeroso e revelador. Enquanto o corpo desse cérebro do jazz se mostrava mais frágil a cada dia, o raciocínio despertava novamente sua condição de mestre, mostrando uma força sideral. 

Os textos, que no início eram gravados, com algumas interrupções, repetições e paradas devido ao cansaço, tornaram-se fluentes. O entusiasmo do Paulinho o levou a assumir o comando total dos teclados nos últimos dois meses, quando se sentava em frente ao meu note para ele próprio redigir sua história. Sempre com bom humor e com sede de vida. Melhorou tanto ao se repensar, ao ver tudo que havia construído e deixava como legado, que além de passar a escrever voltou a sair com mais frequência: queria assistir aos shows, ver os amigos tocarem. Queria conversar. Seu último aniversário, em setembro, foi assim: no Café Fonfon entre muitos amigos, em especial os donos do bar, Luisinho Santos e Bety Kruger, que tocaram em homenagem a Paulo Moreira, inclusive com participação do saxofonista Claudio Sander e da cantora cubana Indira Estévez. Também chegou a subir no palco do Theatro São Pedro, para, diretamente de sua cadeira de rodas, ser mestre de cerimônias. Antes, em fevereiro de 2023, havia ganho um festival com seu nome para arrecadar fundos para o tratamento. O evento foi um sucesso, lotando quatro espaços culturais, em um final de semana, por onde passaram 16 grupos musicais e 78 artistas.

Sobre apresentar shows e festivais, Paulo Moreira registra no livro:

Foi um trabalho que naturalmente se integrou à minha vida de jornalista e radialista, somando-se a uma trajetória de realizações, desafios, criações, prazeres e entrevistas com estrelas nacionais, mestres do jazz mundial, artistas gaúchos, entre tantas outras. 

Sempre comandei com entusiasmo o palco, aproveitando cada oportunidade para dar informações bacanas, muitas em primeira mão. Apesar desta satisfação, o rádio é a minha verdadeira casa. E, certamente, no estúdio criei minha melhor obra: o Sessão Jazz, programa que idealizei e estive à frente por 21 anos. Enfim, é uma caminhada da qual me orgulho. Exigiu dedicação, busca constante de informações, ousadia em vários momentos, determinação, persistência, trabalho, muito trabalho, que sempre fiz com alegria e bom humor.   

A música era a vida de Paulinho, que guardava nas prateleiras de casa uma coleção de 5 mil CDs e 2 mil livros, tudo acompanhado de informações precisas sobre datas, nomes, parcerias, etc., que ele sacava direto da memória, de forma genial. 

Luisinho Santos, Beth Krieger e o Paulinho. Foto: Cláudia Beylouni Santos
Paulinho e Kiko Freitas. Foto: Cláudia Beylouni Santos

 O gosto musical refinado associado à facilidade de guardar informações, à sua irreverência e à coragem de levar ao ar o que acreditava ser de qualidade o levou a criar uma instituição em Porto Alegre: o programa Sessão Jazz, que foi ao ar na FM Cultura por quase 20 anos e depois na rádio web Salve Sintonia, completando, então, a maioridade. Trabalhou na RBS, na produção radiofônica do Campo e Lavoura, assim como no Gaúcha Entrevista, apresentado por Ruy Carlos Ostermann, com quem também foi parceiro num programa de jazz na antiga Gaúcha FM, o embrião do Sessão Jazz

O livro “Para quem não me conhece, meu nome é Paulo Moreira” estava quase pronto neste dezembro de 2023. Ainda faltavam dois ou três capítulos planejados pelo Paulinho. Certamente os amigos, artistas e profissionais que conviveram com ele têm muitos outros registros importantes deste jornalista que soube cultivar, em seus 63 anos de vida, um raro amor pelo jazz. O acervo de histórias e de fotos com destacados nomes da arte, inclusive estrelas internacionais e muitos músicos ainda desconhecidos, é tão múltiplo que não cabe em um livro. Mas ali estará o essencial, o que ele queria escrever primeiro, desde as memórias de infância, dos amigos da adolescência caçando LPs no centro de Porto Alegre às excursões aos festivais nacionais, a ousadia de mesmo fazendo diálise ir a um festival Alemanha. 

Paulinho entrevistou mestres da música instrumental como John McLaughlin. Foto: Arquivo pessoal

Seguem trechos do livro, no qual Paulinho fala dele, de sua fantástica e movimentada carreira profissional, assim como vai pincelando suas impressões e críticas a músicos e obras. E ele sabe o que fala.

Comecei a gostar dos Stones aos 9 anos de idade, quando ouvi pela primeira vez no rádio Sympathy for the Devil. Cinco anos depois, em 1974, veio a notícia de que eles viriam fazer show no Brasil. Fiquei na espera da confirmação. Estava escutando muito na casa de um amigo o disco recém-lançado por eles na época, chamado It’s Only Rock‘n’Roll, mas a turnê não se realizou. Em 76, meu primo Chico Caroço me deu de Natal a fita K-7 do disco Back and Blue, que eu gastei durante um verão em Tramandaí. Aí, fechou. Minha preferência por eles se consolidou. Desde que eu ouvi, lá nos meus 9 anos e até hoje, os Stones seguem em frente. Essa longevidade é que me fascina. A disposição deles é incrível. Mick, com 20 anos, já tomava conta dos palcos. E na época, eu ficava impressionado, pois a maioria das pessoas dessa idade estava em casa de pijama e pantufas. Quando a crítica estava pegando no pé deles, em 78, os caras lançaram o Some Girls, um disco que foi considerado uma resposta dos ‘dinossauros do rock’ à galera punk que ridicularizava as bandas surgidas nos anos 60. O LP era de uma ironia mordaz. A faixa Respectable dizia que Bianca Jagger – de quem Mick estava se divorciando – era a ‘trepada mais fácil nos jardins da Casa Branca’, porque ela andava de namoro com o filho do então presidente dos Estados Unidos, Gerald Ford. Aí, numa entrevista à Rolling Stone, ele desmentiu com a maior cara de pau, afirmando que Bianca era uma mulher respeitável. Os Stones voltavam à sua melhor forma. Agora, aos 80 anos, Jagger e turma – infelizmente, sem o Charlie Watts – seguem encantando as velhas e as novas gerações.

O Neil Young tem uma passagem interessante nos anos 80, quando ele foi contratado por uma gravadora de um amigo, David Geffen, sócio do Spielberg. E o Geffen começou a lançar os discos do Neil Young, só que ele andava fazendo uns trabalhos diferentes. Fez um álbum de rockabilly, um disco de terno branco e topete, estilo Elvis, e um de música eletrônica. O diretor da Geffen Records ficou uma fúria e processou o Neil Young por estar fazendo discos não característicos de sua carreira. Ele não entendeu que o Neil sempre fez coisas diferentes. Claro, tem sempre uma base roqueira, folk, blues, assim digamos 40% dos discos dele são com a mesma banda, com os mesmos caras, o Crazy Horse.

Esta minha característica de sinceridade se reflete no Sessão Jazz quando eu começo a mostrar coisas que as pessoas nunca tinham ouvido e músicas nem sempre radiofônicas, palatáveis, agradáveis para o gosto comum. Por exemplo, eu nunca toquei Kenny G no programa. Mas eu toquei Ornete Coleman, que é o cara do Free Jazz. Apresentei uma vez duas horas do cara mais louco do Free Jazz europeu, o Peter Brötzmann, cortesia do ouvinte Diego Diaz, que tem a maior coleção do saxofonista aqui em Porto Alegre. Inclusive na época Brötzmann veio fazer show no StudioClio e foi uma loucura.

Tocar um Miles Davis de 17 minutos no rádio, no Sessão Jazz, era uma maneira de dizer: ‘Aqui o negócio é diferente’. Eu rodava um disco do saxofonista tenor e soprano John Coltrane e um do bandolinista Hamilton de Holanda mandando ver no chorinho. Sempre acompanhado pela informação dos artistas, da gravação etc. Aí, eu digo que o jornalismo entrou no programa. Esta minha maneira de fazer o Sessão Jazz é que acabou cativando os ouvintes.

As letras do Dylan eram muito enigmáticas. Falar sem ser explícito, gosto muito desse estilo. Tu pegas o disco Blonde on Blonde, onde ele estava mudando seu jeito de compor. Antes, tinha uma pegada folk e subverte tudo isso fazendo um disco de amor, chamado apropriadamente de Another Side of Bob Dylan. Depois, vem Highway 61 Revisited, onde as metáforas começam a modificar seu discurso. Eu sempre tive dificuldade em aceitar aquele papo de “o músico tal é um poeta”. Pra mim, poeta sempre foi o Carlos Drummond de Andrade, o Mário Quintana. Mas, nesses tempos superlativos, até o Cazuza virou poeta. Ele era um ótimo letrista. O próprio Chico Buarque se assume como letrista, ele renega o rótulo de ‘poeta’, pois, em sua opinião, as palavras dele têm de ser acompanhadas por música. Elas não são efetivas sem a melodia.


Iria Pedrazzi é jornalista.

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