Nossos Mortos

Qual é a força do planeta?

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Qual é a força do planeta? Luis Vagner Guitarreiro (Foto: Edu de Ferrari)

Eu comecei o trabalho de pesquisa formal sobre a obra do Guitarreiro em 2009 a partir da possibilidade de realizar um mestrado em música UFRGS com orientação do professor Reginaldo Gil Braga. Dessa pesquisa resultou o livro Suingue, Samba-Rock e Balanço: músicos, desafios e cenários (2013, Ed.Medianiz) e, além disso, surgiu uma amizade. Informal e duradoura.

O final de semana que passou se encheu de homenagens emocionadas, afetivas, doídas por todos os lados, pela notícia da partida do Guitarreiro Luis Vagner… Dias atrás, outro nome fundamental, Cassiano. Acumulando lutos, saímos a procurar na própria memória e nas vozes de amigos próximos o otimismo para seguir em frente. No caso do Guitarreiro, como ficou conhecido no início dos anos 70 a partir do apelido criado pelo cantor Fábio, parceiro de Tim Maia, esperança, simplicidade, otimismo, sabedoria, são termos que ajudaram as pessoas a tentar descrever aquele amigo que se foi aos 73 anos, vítima de uma parada cardiorrespiratória sentado embaixo de uma árvore frondosa em Itanhaém-SP, no pátio de casa, a poucos metros do mar.

Eu conheci o Guitarreiro tardiamente na discoteca da rádio Unijuí, onde o meu tio Luiz trabalhava. Peguei os dois CDs, Swingante e Brasil Afro Sulrealista, lançados pela Paradoxx no apagar das luzes da era da distribuição nacional de discos, no início dos 2000. Eles estavam lá numa prateleira meio escanteada e levei pra ouvir na casa dele. Sendo rato de encartes, li os nomes dos músicos envolvidos, reparei que os dois foram lançados no mesmo ano, 2001, fui escutando as músicas, pescando nomes e tentando encontrar onde poderia se “enquadrar” aquele maravilhoso cantor, guitarrista, compositor. Tu tá louco! É do reggae. É do samba-rock. É romântico. É o quê? Eu já tinha ouvido “Como” no disco dos Papas da Língua, “Camisa 10” num especial da Placar cantado pelo Marcelo D2, e essas duas composições da década de 70 já estavam em algum lugar do inconsciente musical desde a infância. 

E teve o Rodasom no Rio Grande do Sul inteiro, também nos primeiros anos do novo século. Que entusiasmo! Era liderado pelo Bebeto Alves, um projeto grande, amplo e agregador, que misturava programa de televisão e itinerância (três bandas iam no mesmo ônibus para tocar em duas cidades do interior em cima de um caminhão-palco). No programa de televisão, que eu assistia a todos, vem o Luis Vagner com uma banda ½ Porto Alegre (Huberto Boquinha, Gunter Jr, Jorginho do Trompete), ½ São Paulo (Américo Rodrigues, Paulinho Cerqueira, Marcelo Custódio, além dos dançarinos de samba-rock Moskito e Anna Paula), e ainda por cima fechando com uma jam reunindo as outras atrações daquela edição: Xandele, Marco Farias, Anjinho do Trompete, Leco do Pandeiro, Alexandre Rodrigues, Zê Azemar. Todos regidos pelo carisma e domínio musical do Luis Vagner. Uma lou-cura. 

Os amigos da Ultramen chegam em 2003 com “Grama Verde” e “Coisa Boa” acompanhados do Luis Vagner no CD O Incrível Caso da Música que Encolheu e Outras Histórias, e voltam da gravação feita em São Paulo encantados com ele, falando da pessoa, do cara super-hiper-triper que era ele e dos momentos de aprendizado no estúdio, quando ele chegou pra criar “Coisa Boa” junto com eles. Era o re-boom do samba-rock chegando com tudo. Casa da Sogra e Brazilian Sound Machine, projetos do Tonho Crocco, nos bares de Porto Alegre. Clube do Balanço em São Paulo chegando com o disco Swing & Samba-Rock, e na biópsia do encarte tava lá o Guitarreiro compositor em “Saudades do Jackson do Pandeiro”, parceria com o Bedeu, e em “Segura a Nega”, cantada por ele, pelo Mattoli e pelo Seu Jorge, que chegava naquele momento estourado no país com “Carolina” e recém-saído do Farofa Carioca. Além disso, tava lá o Guitarreiro cantando e guitarreando em “Falso Amor”, do Bedeu, e em “Trilha Guitarreira”, parceria dele com o Marco Mattoli.

Alguns anos depois, em um show em um daqueles bares apertados da Cidade Baixa (que saudades do suor e do aglomero), estava lá de novo o sr. Luis Vagner, dessa vez acompanhado de outros Amigos Leais (esse era o nome das bandas que ele montava desde 1982, quando lançou o LP Pelo Amor do Povo Novo): Paulinho McLaren na bateria e Rick Carvalho no baixo, com canjas do Marcelo Salgueiro, Jorge Foques, Tonho Crocco. As músicas que nos discos tinham 4 minutos, no show duravam 9, 12, 15… e tudo parecia tão simples. Parecia tão ensaiado. E o público tão vidrado nele.

Escrevi a palavra “simples” e lembrei de uma das tantas histórias que o Luis Vagner contava envolvendo outros grandes nomes da música brasileira. Era incrível ouvir nessas conversas a memória e o requinte de detalhes e de nomes que eu sempre tinha num panteão da música brasileira e mundial. A cada conversa ia se revelando que o Luis Vagner era desse panteão e eu ia entendendo que o mundo inteiro da música é um grande repositório de pessoas de extremo valor, brilho e garra. Divido com vocês brevemente algumas dessas lindas e curiosas histórias.

O álbum de estreia de Luis Vagner em carreira solo se chama Simples (antes ele havia integrado as bandas The Jetsons e Os Brasas, e com essas bandas foi músico de estúdio e de palco de dezenas de artistas ligados ao movimento da Jovem Guarda). Era 1974, Luis Vagner tinha 26 anos. Ele comentava que o nome do álbum, Simples, foi ideia do Nelson Sargento, que estava gravando em outro estúdio da gravadora enquanto Vagner produzia seu álbum de estreia. As pessoas diziam “esse Luis Vagner é humilde, como ele é humilde”. Ao que Nelson Sargento diz: “humilde não, esse menino é simples”.

Com Zé Keti (Zé Keti!!!!!!) o encontro foi no lendário Solar da Fossa (o livro de Toninho Vaz conta muito do que foi o Solar da Fossa, no Rio de Janeiro, para a música brasileira). À época, os quatro integrantes dos Brasas eram banda de apoio de quase todos os programas de TV voltados para o fenômeno da Jovem Guarda e dividiam um apartamento no Solar da Fossa. Um dia eles estavam sentados em uma área comum do Solar com cara de fome, pois apesar de uma relativa fama o dinheiro faltava para condições mínimas. Eis que Zé Keti passa por eles, os reconhece e os chama: “Venham cá, vou pagar um almoço pra vocês, eu tô vendo que vocês estão precisando comer”. Décadas mais tarde, Luis Vagner foi chamado pelos filhos de Zé Keti para produzir um disco dele. O disco foi gravado, mas nunca lançado porque Zé Keti faleceu durante o processo de gravação.

Com Raul Seixas uma das histórias é em um amanhecer no Rio de Janeiro. Os dois estavam gravando seus álbuns (Luis Vagner o Simples, Rauzlito o Krig-ha Bandolo!) e atravessavam a pé um dos túneis da cidade. Quando Raul Seixas diz: “Escute o que vou dizer: amanhã o país inteiro vai ligar o rádio e escutar uma música minha”. E cantou “Ouro de Tolo”. No outro dia o Guitarreiro liga o rádio e comprova a profecia do amigo.

Com Tim Maia: Luis Vagner contava que os papos de Tim volta e meia eram sobre produtos para alisar o cabelo, dentre outras tantas questões. Com Roberto Carlos, com Cassiano…, com Wando, com Bedeu, com Jorge Ben, com Marku Ribas, com Cesar Camargo Mariano, com Paulo Moura, com Simonal e seus filhos… 

Em 1985, no Festival dos Festivais, organizado pela TV Globo, Luis Vagner & Amigos Leais venceram a eliminatória da região sul e foram se apresentar na semifinal no Maracanãzinho com o reggae “Não Negai”. Anos mais tarde os músicos do Cidade Negra o viam e diziam que em 1985, ainda jovens sonhadores, sentados na frente da TV, tinham em Luis Vagner um modelo de músico negro reggaeiro brasileiro a ser seguido. Essa música linda começa com o verso: “Qual é a força do planetaaaaaaaaaaa? É o amor que nos leva lá”.

Fernanda Braz, última esposa de Luis Vagner, fala que é forte o sofrimento da perda e da saudade, mas também é presente a certeza de que ele cumpriu o que veio fazer nessa existência, e é com essas tantas boas lembranças que cada uma e cada um que conviveu com ele, principalmente seus filhos Cainara, Manauara, Luis Vicente, Flexa, Cacaia e Mar y Raio, ficarão.

Guitarreiro, da tribo guerreira que luta sem eira nem beira, obrigado, tua música planetária brasileira seguirá pela eternidade.


Mateus Mapa – músico e pesquisador. 

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