Nossos Mortos

Zé Flávio

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Zé Flávio Foto: Almôndegas/Divulgação.
Não poderia haver sincronicidade maior e mais dolorosa do que preparar uma citação de Dear Prudence, dos Beatles, para o show Casa Ramil e a despedida do Zé Flávio acontecer justo no dia da nossa estreia. Ele me ensinou a tocar essa e muitas outras músicas dos fab four quando eu era adolescente. Os Beatles eram os heróis que tínhamos em comum; nós, incomuns. O Zé foi o irmão mais velho com quem tive sintonia irrestrita, talvez pelo detalhe de não termos sido irmãos de verdade. Cada encontro era aberto por uma série de pregões cujo significado só nós conhecíamos: “Eu digo: Neusa!”; “Me traz um café preto com morcilha frita”; “Me amarro em baseado”; “Pá que tal!”; “Tudo tem o seu límito”; “Cristianismo não é catolicismo!”. “Caguei” era nosso julgamento para quase tudo. Aos 14 anos eu tocava com meu primeiro grupo uma música dele, Sorriso amarelo, que só viria a ser gravada recentemente, e por ele mesmo, em seu primeiro disco solo, Fingerprint, com participação de Kleiton e Kledir. Mas era como se todas as músicas fossem dele. Todas as guitarras também. Como tocava! Ele minimizava seu solo e as demais guitarras de Deu pra ti, mas isso era típico dele. Qualquer elogio era recebido sempre com pouco caso. Não perdia tempo com o que já estava feito; o melhor estava sempre por vir. Eu adorava sua inquietude criativa, sua agitação afetuosa, sua rapidez de raciocínio. A última frase que me disse, por mensagem de áudio, finalizada com uma risada que deixa muitas saudades: “Vitor, Fellini não chegou a nos conhecer. Ele ia ficar de cara conosco. Pode ter certeza!” O que Fellini acharia do filme que fizemos juntos? Só o Zé para encarar aquela superprodução comigo. Pery Souza, meu primo, e a Dalva, minha mãe, ambos com máscaras chinesas que tornavam suas vozes incompreensíveis, faziam figuração. “It’s been a long, long, long time…” Quantas vezes cantamos isso nas tardes amenas da Rua das Acácias, onde ele morava com o Kleiton e o Kledir no Rio. O Nelson Félix ocupava uma casinha vizinha e estava sempre junto. Aquela pequena vila cheirando a jasmim e chamada Leonor, mesmo nome da minha bisavó, de paredes brancas e janelas azuis, onde também morou a Ana Cristina César, terá existido mesmo? Faz muito, muito, muito tempo, Zé. Mas não vai passar. Zé Flávio e Vitor Ramil. Foto: arquivo pessoal. Vitor Hugo Alves Ramil, mais conhecido como Vitor Ramil, é compositor, cantor e escritor de Pelotas. Começou sua carreira nos anos 80. Na música, lançou onze álbuns. É autor dos livros Pequod (1995), A Estética do Frio (2004), Satolep (2008) e A primavera da pontuação (2014).

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