Pequenas ficções

Acerolas tristes de apartamento

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Acerolas tristes de apartamento
As mulheres reunidas para o chorar criaram uma canção que os passarinhos tão metidos pararam a vida e as construções para ouvir. A torneira instalada no quintal, a menina pequena tomava banho com os braços entrelaçados um no outro, dando pulinhos de frio, e a menina maior jogando a cuia na cabeça da inquieta. O xampu de criança que pode pegar no olho, mas mesmo assim não se deixa pegar, porque não se confia em química. A pequena esfrega cada parte do corpo enquanto a maior diz que ela não sabe tomar banho direito.  A torneira atrevida esguichando água por todos os cantos, não era igual a dos apartamentos do centro. A menina crescida, com boletos e preocupações de tiara, sente falta das torneiras que no choro precisavam de retalhos dos seus vestidos para domar a água. O coador do choro das mulheres.  Durante o banho a mão da menina maior tirava a sujeira das dobras dos pequenos braços da menina pequena. As acerolas caíam de monte e a garotinha tão minúscula sentia a grandiosidade do cheiro de todas e o próprio, da colônia de alfazema que ganhou da mãe, vidro tão bonito com a camponesa de chapéu enorme colhendo algodão. E escapava da irmã, escapava pelada, recém cheirosa, antes do abraço da toalha felpuda com barra de crochê, para catar as acerolas e as colocar no pote de plástico com a inicial da mãe em hidrocor. Precaução para parente não roubar e quem sabe devolver lavada.  Acerolas que sobram, que elas doavam aos vizinhos, frutas que riam escandalosas quando se despiam as torneiras. Peladas. Menina e torneira. Água por todos os lados repousavam em cada acerola com trilha sonora do riso da menina pequena e o grito da irmã mais velha. Volta aqui Vivi!  Hoje a menina crescida veste camadas e camadas de roupa e tristeza. Hoje a menina crescida traz triste as acerolas tristes de supermercado para casa, que nascem com venenos. Lava tudo com bicarbonato e muito sabão, chora na frente da pia brilhante e perfeita do apartamento da doca. Liga o gravador, não tem com quem conversar. A luz vermelha diz que está ouvindo, está gravando. Ela senta na poltrona laranja e desabafa.  Minha irmã mais velha está doente desse vírus que se espalhou pelo mundo, soube que se isolou no quarto enquanto as filhas deixam sua refeição na porta, que ela abre rápido. São duas semanas para esperar essa maldição ir embora. Dizem que foram profecias, outros dizem que a história se repete, mas eu sei que é algo que não aceito, que não quero lidar, mas preciso orar para que passe. Porque se não passar não tem leito, não tem esperança, não tem santa. A santa tá sobrecarregada. Quando você me dava banho antes da mamãe chegar do trabalho eu sentia e você sentia, era você minha mãe, mesmo que fossemos crianças com pouca diferença nas idades. E só quando o portão de madeira rangia, mamãe voltava, você era criança de novo. Um pote […]

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