Pequenas ficções

Jogo de cartas

Change Size Text
Jogo de cartas

¡Es demasiado triste, tristísimo! – era uma das expressões mais usadas por Victoria Abaracon em situações como aquela e, em especial, naquele dia. Os corpos demoraram a chegar a Montevidéu, onde seriam enterrados. Caixões fechados, lacrados e com pequenas etiquetas identificando quem estava dentro. Orações, revolta, choro, os carrinhos do cemitério guinchando até o jazigo, o som metálico da pá do pedreiro assentando o cimento nas tampas dos nichos, abraços, lágrimas, ¡Fuerza, Victoria, fuerza!

Era final de verão e os quatro voltavam do Brasil. O carro desgovernou e atravessou a pista, batendo de frente num caminhão que transportava toneladas de grãos. A força resultante do impacto transformou o carro e os corpos de Pablo, Graciela, Pablito e Micaelita numa massa de metal retorcido, plástico e restos humanos.

Nos dias seguintes, para Victoria, aquilo tudo parecia muito irreal. Era como se ainda estivessem em férias e dali a pouco retornassem para o apartamento ao lado do seu, no edifício Palácio Salvo, bem no centro de Montevidéu. Victoria morava há décadas ali, e quando conseguiram alugar um apartamento para Pablo e sua família no mesmo prédio ela ficou muito feliz. Foi como se revivesse o tempo em que seus filhos eram pequenos e corriam pelos mesmos corredores em que seus netos agora corriam e gritavam – forçando sua paciência de lady uruguaia.

Dias depois veio o momento mais doloroso – mais do que a tortura. Precisava esvaziar os roupeiros, dar os brinquedos, enfim, entregar o apartamento de Pablo. Cada objeto pesava mil quilos. Colocar uma peça de roupa de Graciela na sacola doía como se alguém arrancasse um pedaço da sua pele. Cada sapato de Pablo que ela tirava do armário era como se ela mesma arrancasse pedaços de sua própria pele. Mas cada brinquedo das crianças que ia para a caixa era como se seus membros estivessem sendo quebrados, torcidos e cortados vagarosamente.

Foi nessa época que chegou para Pablo uma carta do Brasil. Eleuterio, o zelador, a entregou, cara enlutada, segurando a boina preta. 

Mira que raro, Eleuterio, una carta de verdad…

Victoria tinha e-mail e usava aplicativos de mensagens. Pagava suas contas pelo aplicativo do banco. Considerava-se uma mulher atualizada e por isso mesmo sentiu um doce estranhamento ao ver o envelope endereçado a mão para Pablo e Família. A carta dizia assim:

Queridos hermanos!

Como estão? Tentamos falar com vocês mas vocês nunca respondem nossas mensagens e nem atendem o telefone!!!! Será que vocês nos deram os dados errados de propósito?

Eu e a Vera conversávamos ontem à noite sobre o que fazer nas férias de inverno e resolvemos ir a Montevideo. Queremos encontrar vocês!

Respondam! Mandem mensagem! Telefonem! 

Beijos e abraços,

Felipe

Victoria sentiu um vácuo dentro de si. O coração batia muito rápido e todos os seus órgãos se contorciam, provocando uma cólica absurda. Seu choro era intenso, mas sem qualquer ruído. Suas lágrimas eram grossas e contínuas. Victoria chorava, mas seu choro parecia chuva.

Victoria havia jurado para si mesma que nunca iria parecer destruída, passasse o que passasse. Secou as lágrimas, ajeitou o vestido e arrumou o cabelo delicadamente para trás, fazendo um coque. Aprumou-se. Acomodou as costas no encosto da cadeira da escrivaninha, pegou uma folha de papel daquelas em que as crianças faziam desenhos, segurou tão firme quanto pode a Parker 51 que ganhara no Liceu e começou a escrever:

“Queridos Amigos”.

Como estão? Espero que bem.

Desculpem ser direta, mas às vezes é o melhor a fazer. Lamentavelmente houve um acidente na volta para o Uruguay. Nosso carro bateu num caminhão. Graças a Deus que Pablo não estava correndo e todos estávamos usando o cinto de segurança – sofremos apenas alguns pequenos arranhões, nada de mais.

Tudo isso atrasou muito a viagem e, para completar, quando chegamos o apartamento estava inundado por causa de um vazamento. Precisaremos trocar encanamento, abrir paredes, um inferno. Estamos aqui na minha sogra, acampados e ficaremos por aqui mais um tempo. Tudo está muito confuso, por agora, mas acho que em julho podemos até receber vocês.

Não respondemos suas mensagens porque cambiamos de operadora. Meu número mudou para … Pensando bem, não vou passar o número novo. Adorei receber uma carta! Havia anos que não sentia a expectativa de abrir um envelope para saber o que está escrito naquele pedaço de papel que está ali dentro. Numa carta podem caber todas as histórias e as emoções do mundo, concordam? Vamos nos comunicando assim por um tempo. Vai ser interessante reviver o tempo das cartas!

Como é grande a saudade que sentimos das nossas férias no seu lindo país e de vocês!

Escrevam! Vamos aguardar!

Pablito e Micaelita mandam beijos para os amiguinhos!

Saludos y abrazos,

Graciela

PS: mandem as próximas cartas para o mesmo endereço que vocês mandaram a primeira, só trocando o apartamento para o 4C e endereçadas à minha sogra, Victoria Abaracon.


Fausto Leiria se encanta com histórias curtas e ligeiras. E adora se imaginar como escritor.

ASSINE O PLANO ANUAL E GANHEUM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHEUM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.