Pequenas ficções

Quem pode a sua vida contar?

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Quem pode a sua vida contar?

Esse lance de fazer mestrado é uma verdadeira viagem. A gente, que já não era muito normal, começa a desenvolver rituais e manias próprias. Minha metodologia de pensamento inclui idas no meu intervalo do trabalho ao parque. Para quem interessar meus processos filosóficos, indico, é bem simples: almoço minha vianda, nem tão rápido a ponto de atrapalhar a digestão, o que seria prejudicial para o pensamento, nem tão devagar a ponto de ocupar toda a hora de intervalo. O ritmo da mastigação já ajuda a entrada no modo pensante. Pego a sacolinha que tem um caderno e outros objetos, às vezes até uma leitura, e vou até o parque.
A escolha do banco geralmente é regida pela intuição, a sombra das árvores e a direção do vento. Semana passada eu andei um pouco mais que o de costume, pois o calor estava pegando pesado na nossa Porto Alegre. Me sentei e fiquei olhando o tempo. Ando pensando bastante sobre os nomes que dariam para explicar, ou insinuar os processos da minha escrita. Sentada ali, pensando em nomes, me veio uma ideia. Nada muito sério. Era uma daquelas fininhas, frágeis, beirando a transparência no seu corpinho de molusco sem concha. Mas eu não podia perdê-la. Peguei rapidamente meu caderno, e uma… cadê a caneta? Ai, droga, onde foi parar? Quando a gente mais precisa…
Fiquei repetindo pra mim mesma a minha ideiazinha antes dela sumir. Precisava de uma caneta, era uma urgência daquelas de vida ou morte, olhei pra um lado: a imensidão do parque vazio assolado pelo bafo quente da tarde, olhei pro outro, uma senhorinha.
Dona Loyde, como descobri depois, tinha mais que uma caneta para me emprestar, para a nossa alegria e deleite, me permitiu compartilhar com vocês, caríssimas leitoras, ilustres leitores da Parêntese, um pedaço de sua história. Que vocês também precisem pegar canetas emprestadas esta semana. Boa leitura!

Nathalia Protazio


Como era lindo o amanhecer na minha infância! O céu parecia mais azul, as nuvens branquinhas formando desenhos pelo ar. Os pássaros em revoada chilreavam pelos ares. Tudo era bom, tudo era natural.

Às 5 horas, antes do sol nascer, meu pai acendia o fogão à lenha. Este na noite anterior tinha sido arrumado: duas achas de lenha, o papel amassado entre elas, os cavacos picados por cima do papel e era só lascar um fósforo. A chaleira já estava pronta com água e um papel tampava o bico – este era retirado antes de ir ao fogo. Enquanto isso, o mate, bem cevado, já aguardava a hora do chimarrão!

No dia anterior também se comprava uma pata de vaca que no início da manhã iria para o fogo numa panela de ferro. Passado um determinado tempo era retirada da fervura e levada a um picador de lenha, onde, com cuidado, se batia a pata para retirar o casco, ou seja, o sapatinho. Depois de disjuntada e higienizada, era colocada na panela do feijão que estava fervendo. Ao disjuntar o casco era jogado fora e a canela era serrada ao meio no sentido transversal e colocada numa travessa alouçada, para se obter o óleo de mocotó, dentro do forno do fogão.

Minha mãe levantava e em dado momento verificava se o óleo já tinha sido extraído na travessa que foi ao forno. Daí era só coar num coador de arame fino e guardar numa vasilha. Este azeite de mocotó era muito usado ao pentear o cabelo. Um pequeno olho de azeite servia para pentear todo o cabelo ou fazer massagem nas juntas e muito mais!

Enquanto isso o feijão era temperado e comido com batata doce cozida e arroz.

No café da manhã era feito o que chamávamos de “café com farinha”, que era feito assim: numa vasilha se colocava a farinha de mandioca (1 colher por pessoa), o açúcar, a essência de café passado no coador de pano e água suficiente. Deixava a ferver, retirava-se do fogo e colocava um pouco de leite da vaca. Misturava-se e era servido em tigelas individuais. O pão era de 1 kg, cortado um pouco enviesado para parecer maior.

Nós éramos saudáveis, alourados e corados. Tudo era ao natural. Era muito raro adoecermos! Comíamos na hora certa. Minha mãe levava-nos todos os anos ao Posto de Higiene (Centro de Saúde) para tomarmos uma injeção de cálcio e vitamina C misturados no mesmo aparelho. No mês de abril meu pai nos dava um laxante – que na época se chamava purgante – para limpar os intestinos. Se algum de nós tivesse qualquer doença, como sarampo, minha mãe colocava todos juntos para que todos se livrassem ao mesmo tempo. 

Não tínhamos geladeira. Para conservar o leite da vaca, colocávamos em garrafas dentro de um balde que ficava uma parte mergulhada na água do poço. 

No pátio tinha balanço de corda de poço. Fazíamos uma fila e um era escolhido para embalar os outros. Cada um contava até trinta e se atirava. Ninguém se quebrava!

As meninas brincavam de boneca, todas de pano. Foi um alarme quando surgiu a boneca com cabeças, braços e pernas de louça. Os meninos jogavam bola. Faziam mangueira para brincar, onde os gados eram os ossos do casco da pata da vaca. Vivíamos bem. 

Eu sempre gostei de escola, teatro. Às vezes improvisava um palco, tinha canto, esquete, poesia e algo mais. A noitinha meus pais e alguns vizinhos sentavam na frente do portão para conversar e nós brincávamos de roda cantada. Me lembro de algumas como: Senhora Dona Cândida, passa-passará, o anel anda na roda, ciranda-cirandinha, tem pãozinho? Era lindo viver na minha época! Jogar sapata, berloque, ioiô, bolita, funda, figurinhas, pular corda.

No natal a gente é quem fazia os enfeites. Depois da janta cada um fazia uma tarefa: forrar estrela, fazer gaitinhas de papel etc. A árvore era natural, enfeitávamos um galho de árvore colocado dentro de uma lata com terra.

Na páscoa eram ovos coloridos, com amendoim torrado e açucarados. Tudo era festa. Tudo era natural!


Loyde de Carvalho Fagundes é professora primária aposentada, nasceu nas plagas do sul em Uruguaiana em 1935. Uma família de oito irmãos e teve oito filhos, cinco homens e três mulheres e pra não botar defeito, fechou com chave de ouro: gêmeos, dois guri. Hoje está escrevendo a sua autobiografia.

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