Pequenas ficções

Aquele dia, aquele homem

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Aquele dia, aquele homem

Naquele sete de abril de 2018, Gomes entrou em casa calado. Laurinda desconfiou que alguma coisa tivesse acontecido. E coisa séria, porque seu velho sempre aparecia sorridente, fazendo barulho desde a chegada no portão, chutando longe a bola da gurizada e gritando um GOOOLLL estrondoso. Desde que largou da bebida era um homem alegre.

Chegou quieto. Estaria doente? Gomes entrou com passo pesado. As crianças o chamaram, mas ele fez um sinal dispensando o convite e foi direto para o quarto. Fechou a porta. Laurinda largou o ferro e, decidida, foi atrás dele. Abriu com vagar a porta. Gomes estava sentado na beira da cama com a cabeça apoiada entre as mãos. Um soluço curto foi ouvido. Ela entrou sem fazer ruído. Sentou-se de leve ao seu lado e num sussurro perguntou:

─ O que aconteceu, meu velho?

Ele continuava com a cabeça baixa, enterrada entre as mãos. 

─ Foi despedido? Não fica assim, a gente dá um jeito. Sempre tem uma saída.

A mulher não sabia o que fazer. Tinha medo de tocá-lo e interromper aquele momento. Em silêncio, esticava a saia, tirando fiapos inexistentes. 

─ Me diz o que houve, posso te ajudar. Fala homem, pelo amor de Deus! Não consigo te ver assim!

Gomes soltou as mãos, que mais pareciam garras, e ainda com a cabeça baixa ensaiou uma fala.

─ Hoje…hoje…eu, eu arrumei a cela dele. 

─ Dele quem, homem? Todo dia tem gente que vai pra lá e tu não fica assim! Quem?


A aragem fresca do início de outono havia moldado aquela manhã. Gomes saiu depois de tomar um café bem forte. Pegou a marmita, que Laurinda deixava pronta na geladeira. Ele preferia a comida da mulher do que a servida no trabalho. Caminhou as duas quadras que o distanciavam do ponto de ônibus puxando a gola da jaqueta para aquecer o peito.

Nos últimos tempos, andava muito ocupado. Era convocado para tarefas especiais porque, diziam, confiavam em seu capricho e, mais do que tudo, em sua extrema discrição. 

No dia anterior, no final do expediente, foi chamado no gabinete do chefe. Fora escolhido para um trabalho especial. Mesmo discreto, ou até ingênuo, Gomes sabia que era mais um “colarinho branco” que viria. Fazer o quê? Para ele todos eram iguais, logo faria o seu serviço normalmente.

Sendo assim, às sete horas da manhã atravessou os portões do prédio da Superintendência da Polícia Federal. Marcou o cartão-ponto e foi para o departamento dos funcionários encarregados da limpeza e manutenção das instalações carcerárias. Lá, já o esperava uma planilha com o serviço que deveria fazer naquele dia. Uma anotação, em negrito, dizia para preparar a cela 34 porque receberia um novo detento. 

Como era de seu estilo, no trabalho pouco falava. Cumpria ordens sem questionar. A vida tinha sido dura para com ele e esta lição tinha aprendido muito bem: trabalhar e pouco perguntar fazem permanecer no emprego. Não era mesmo de muita conversa com os colegas e nem usava celular para flagrar algum “medalhão” pra depois divulgar por aí. 

Seguiu para o 3º andar. Na porta, o número 34. A cela era bem arejada. Embora a janela fosse pequena recebia o sol, ainda fraco, daquela manhã. De acordo com as ordens marcadas na planilha, varreu o espaço, passou pano úmido em tudo, limpou o minúsculo WC com desinfetante deixando o lugar cheirando a pinho-sol. Colocou papel no dispenser, conferiu o sabonete líquido e passou uma flanela no espelho do armarinho sobre a pia.

Finda a limpeza, trouxe o colchão. Era um colchão novo. Tirou o plástico e o colocou sobre a cama. Pegou os lençóis brancos esticando até os elásticos dos cantos se encaixarem. Quem viria? As notícias por ali corriam soltas. Uns diziam que era mais um da Lava-Jato, e até andou ouvindo boatos de que seria o ex-presidente que estava com a corda no pescoço. Não lhe importavam as notícias; a cada dia, seu trabalho era esticar lençóis, fazer a limpeza das celas e calar. 

Feita a cama, Gomes colocou a fronha no travesseiro. Se fosse mesmo “ele”, foi na época do seu governo que tinha conseguido dar pra Laurinda a casinha que ela tanto sonhava. Pequena, mas deles. Pôde fazer a horta e comprar um carro usado, que ainda funcionava bem. Emprego para os dois, e as crianças na escola. Conseguiu que o Laerte, o mais velho, entrasse na faculdade. Tudo isto começava a desmoronar. Só lhe restava a aposentadoria. A malfadada aposentadoria.

Tudo feito, estendeu ainda um cobertor aos pés da cama – as noites ali eram muito frias. Conferiu item por item. Faltou a água. Pegou a jarra e o copo. Colocou sobre a mesa. As toalhas, sobre a cadeira. Um último olhar e fechou a porta. 

No corredor, uma algazarra. Seguranças vindo pelas escadas. Gomes se encostou na parede. Homens enormes cobriam sua vista, mas conseguiu, mesmo assim, ver uma cabeça grisalha entre os muitos ombros e braços. A escolta chegava cada vez mais perto. Alguém no meio do burburinho gritou: “Aquele ali é que preparou a tua caminha!”, apontando para ele. O ex-presidente parou à sua frente. Abriu os braços e o puxou para um abraço. Gomes conseguiu ouvir: “Obrigado, companheiro!”

Gomes encerrou o dia. Devolveu a planilha com as tarefas realizadas e foi pra casa, naquele 7 de abril.


Nara Accorsi – Formada em filosofia, iniciou na escrita em 2010 com Valesca de Assis e tem contos e crônicas publicadas em 5 antologias; fez curso de Escrita Criativa na PUC com o prof. Assis Brasil.

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