Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo LXXXVI – Anos 60: A era dos Festivais em Porto Alegre

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Capítulo LXXXVI – Anos 60: A era dos Festivais em Porto Alegre

Como já vimos, o primeiro foi o Festival dos Novos Compositores, em 1963, no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Logo em seguida, não em Porto Alegre, mas quase que sim – afinal era a praia dos porto-alegrenses por excelência – houve em Tramandaí o I Festival de Jazz e Bossa Nova do Atlântico Sul, em fevereiro de 1964.

A partir de 1965, no eco do que começava a acontecer no Rio e em São Paulo, explodem os festivais de música popular na cidade. Primeiro em colégios, logo em faculdades e daí para os abertos a todo mundo, eles tiveram seus maiores momentos nos Festivais da Arquitetura da UFRGS e no Festival Sul-Brasileiro da Canção Popular, entre os anos de 1967 e 69. 

Raul Ellwanger esteve em quase todos os principais deles, e lembrou dessa cena num depoimento à Rádio da Universidade da UFRGS em 2019:

Todo mundo queria ser o Edu Lobo, queria ser o Sidney Miller. (…) E (…) na minha geração, a turma da Frente Gaúcha de Música Popular Brasileira, a gente tinha uma certa birra com a turma mais velha, do Lupicínio. A gente não queria fazer aquela música. A gente queria outra música, com mais identidade, falar da nossa cidade, da nossa geração. A gente achava aquela música muito calcada no samba-canção carioca: o morro, a mulata… 

Grande parte do que de melhor se escreveu sobre o assunto está no já tão aqui citado texto de Juarez Fonseca sobre a cena porto-alegrense dos anos 1960. Com os festivais não é diferente:

Os festivais eram mesmo assunto do Brasil inteiro pelas novidades que traziam, e até uma certa válvula de escape para as torcidas que se formavam – os da Record chegavam ao Rio Grande do Sul em tape, apresentado um dia depois pela TV Gaúcha. 

Teve edição que chegou a receber mais de um milhar de canções inscritas, dando conta do tamanho da produção represada. 

(E em ambos os festivais os integrantes da Frente Gaúcha de Música Popular tiveram grande destaque. Voltaremos a ela, a Frente.) 

Tudo começou com o 1º Festival Sul-Brasileiro da Canção Popular.


Capa (acima) e contracapa (abaixo) do disco do festival.

A primeira edição, de 1967, teve pouco menos que 1300 inscritos, que se apresentaram por quatro noites de Teatro Leopoldina lotado. A final, com os 17 melhores, aconteceu em 10 de julho. Sucesso absoluto. A promoção era assinada pelo jornal Zero Hora, mais a Rádio e TV Gaúcha, somados ao Sindicato dos Músicos e à gravadora CSB/CTG Discos. E com patrocínio da Renner, que garantia para o acompanhamento uma orquestra regida pelo respeitado maestro italiano Salvador Campanella.

Como se não bastasse, a final foi gravada ao vivo e lançada em LP pela primeira tentativa de gravadora local desde o fim da Casa A Electrica, nos anos 1920: a CSB/CTG Discos. Do já veterano cantor, compositor e eventualmente empresário Rubens Santos (a CSB/CTG quase nunca é lembrada, porque não conseguiu estabelecer-se como conseguiria, nos anos 1970, a Gravadora Isaec).

Juarez Fonseca, falando desse primeiro festival, de recorte mais tradicional que os que viriam:

Um dos méritos (…) foi ter reunido músicos de todas as áreas. Na noite final estavam cantores do rádio, como Edgar Pozzer, Roberto Gianoni e Érica Norimar; gente dos melódicos, como Sabino e o Conjunto Arpége; a velha guarda do samba, representada por Alcides Gonçalves; mais a turma da bossa/MPB, Luiz Mauro e o Canta Povo, este concorrendo com duas músicas, sendo o samba Batucada, de João e Ivaldo, a preferida do público.

Mas o júri deu a vitória ao samba-canção Cantiga da Menina, de Rosa Maria Hessel. Batucada não ficou nem entre as três primeiras, provocando irada reação da plateia, que vaiou estrepitosamente a vencedora, chegou ao exagero de quebrar algumas poltronas do teatro e saiu para a Avenida Independência cantando a música em uníssono. 

Sobre o Canta Povo, ao qual voltaremos com vagar, o jornalista Osmar Meletti escreveu no Correio do Povo:

“O grupo recebeu aquilo que se pode chamar de consagração popular”.


As adolescentes Vera Beatriz (voz) e Rosa Hessel (a compositora, ao violão), as tímidas e vaiadas vencedoras.

Sobre a vencedora, pouco se escreveu. Mas, felizmente, 55 anos depois, ela mesma lembrou de tudo aqui mesmo na Parêntese, num texto intitulado Vida e música popular: memórias de uma adolescente porto-alegrense dos anos 60. Vale transcrever alguns trechos que são um lindo depoimento de fã dos festivais de Rio e São Paulo que se transforma em concorrente no primeiro grande festival da sua cidade:

Vivi – e vivemos – toda a euforia, a adesão, a expectativa, o entusiasmo – da chamada Era dos Festivais.  Muito já foi escrito sobre esta ‘era’, mas minhas lembranças de meu contato – e também de irmãs e irmão – com os festivais nacionais são muito vívidas. Assistir às semifinais transmitidas pelas TVs, com papel na mão para anotações, olhos/ouvidos  muito antenados… e ir para a aula no dia seguinte com a expectativa de discutir preferências e impressões com colegas, abrir ansiosa os jornais diários ou revistas semanais na esperança de algum detalhe interessante a mais, apaixonar-se por compositores/cantores ‘lindos’ e torcer, torcer muito pela música preferida na final, aguardar as gravações que logo começariam a tocar nas rádios, “tirar” as músicas no violão, cantá-las em grupo,  foram situações que preencheram muitas e muitas horas da minha vida de adolescente (e de quantas/os mais?).

Dentro desta atmosfera de criação, de escrita e de competição (com muito violão no meio, instrumento agregador por excelência), também comecei a compor canções. E, em 1967, anuncia-se a realização do 1º Festival Sul brasileiro da Canção Popular. (…) A inscrição era simples – uma fita cassete com a composição, uma escrita em pauta de sua linha melódica e, talvez, a letra datilografada.  Com o estímulo de meu irmão, inscrevi a “Cantiga de Menina”, canção com duas partes que se intercalavam: uma toada, entremeada com outra parte em ritmo de samba bossa-nova, mesclando tons maiores e menores.  Havia composições com duplas partes na MPB da época, como “A estrada e o violeiro”, de Sidney Miller; devo ter me inspirado em alguma delas. A letra, singela, evocava cantigas de roda – “Entra na roda, menina linda, canta um versinho pra encantar” mesclada a menções à importância do amor em um mundo utópico, dentro de uma estética da época e do alcance da compositora de 16 anos. 

(…)

Na final do Festival, apresentadas as concorrentes, havia, obviamente, a expectativa pelo anúncio dos três primeiros lugares. Em 3º lugar, foi anunciada ‘Marcha para um novo amor’, marcha-rancho de Luiz Mauro, em 2º lugar, foi posicionada “Amor Menino”, outra marcha-rancho, de Luís Roberto Freda, belas composições, que foram reapresentadas. Enfim, para nossa surpresa (…), anunciou-se a ‘Cantiga da Menina’ como vencedora. (…) Fomos brindadas com uma avassaladora vaia – elemento quase essencial no ritual dos festivais da época. (…) Os apupos acompanharam a execução da canção, dificultando, mas não impedindo, que Vera Beatriz, com seus 15, 16 anos, conseguisse ouvir o tom e chegasse galhardamente ao final da canção.


Mas a edição que mais ficou na memória do Festival Sulbrasileiro da Canção Popular foi a segunda, de 1968, vencida pelo veterano Túlio Piva com seu Pandeiro de Prata

Em seguida vieram os jovens: Raul Ellwanger, 20 anos, levou o segundo lugar com O Gaúcho. Seguido de César Dorfman, 27, com O Sonho, interpretada por Érica Norimar, que puxaria o futuro disco de estreia da cantora, pela Continental. 


O raríssimo LP de Erika.

Em quarto, Carroceiro, de Mutinho. Seguido de Velha Porto Alegre, de Beto Morgado, com Beto acompanhado pelo conjunto Moulin Rouge. Em sexto, Tempo de Partir, de Sérgio Napp, interpretado por Paulo Roberto. Entre as não premiadas, outras canções comentadas na época foram e Toadinha, de Cesar Dorfman, Viva a Paz, de Ivaldo Roque, Samba da Borges, de João Palmeiro e Mutinho, Sexta-Feira 13, de Wanderlei Falkemberg, e as duas canções de Luiz Mauro – acompanhado por famoso Renato & Seu Conjunto: Fim de Madrugada e Eu e Você.

É curioso que, com tanta gente jovem que predominava em palco e plateia, o vencedor tenha sido Túlio Piva e seu Pandeiro de Prata. Mas é só ver o contexto: essa vitória anunciava que chegara a Porto Alegre o momento nacional de redescoberta de velhos sambistas que traria de volta, entre outros, Nelson Cavaquinho, Cartola, Guilherme de Brito, Clementina de Jesus, Adoniran Barbosa e Lupicínio.

Apenas um ano antes, no 1º Festival Sul-Brasileiro da Canção Popular, seu companheiro de geração Alcides Gonçalves não tinha tido grande repercussão com a canção Minha Seresta (que seria a música título de seu segundo LP, 15 anos depois). 

Graças ao festival, Túlio reapareceria antes de Lupi. Ao longo da década de 1960, Lupicínio fora progressivamente esquecido, a ponto de não ter se classificado para a final deste mesmo 2º Festival Sul-Brasileiro da Canção Popular.  Consolava-se em vagar pela noite, cercado por sua turma de velhos amigos velhos. Numa dessas, conhece Augusto, Haroldo de Campos e Décio Pignatari – o trio da poesia concreta –, que fica embasbacado com a inexistente fronteira entre sublime e grotesco na obra do compositor ao qual nunca haviam prestado atenção. Augusto escreve o artigo Lupicínio Esquecido?, onde traça paralelos com Shakespeare, João Gilberto e Nelson Rodrigues. E o resto da história está em “Lupicínio Rodrigues – Uma Biografia Musical”, deste servidor, que sai em livro ano que vem.


Muita gente boa inscrita…

A grande novidade era que as cinco primeiras colocadas do 2º Festival Sul-Brasileiro da Canção Popular foram automaticamente escaladas para o I Festival Nacional da Canção Popular, também chamado O Brasil Canta no Rio, que aconteceu dia 27 de julho no Maracanãzinho. 

Pandeiro de Prata e O Gaúcho chegam a ficar entre as finalistas do festival, que é vencido por Modinha, de Sérgio Bittencourt (filho de Jacob do Bandolim). Com isso, vão para o disco, até pouco tempo um raríssimo LP, hoje disponível nas plataformas digitais.

O curioso é que Tempo de Partir, de Sérgio Napp, não entrou nesse festival poque ficara em sexto lugar. Mas acabou no lucro: foi classificada para a primeira eliminatória do III FIC, o Festival Internacional da Canção. Que era mais importante, e aconteceu em setembro, no Rio, com o mérito consagrado a posteriori de ter sido o último grande festival dessa era. 

Sim, você não tá lembrando. Mas é fácil: é aquele da polêmica entre Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim, e Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores, de Geraldo Vandré.


Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (20 álbuns e EPs) e doutor em Lupicínio pelas Letras da Ufrgs. Publicou Elis, uma biografia musical (arquipélago, 2015) e tá no prelo Porto Alegre, uma biografia musical, Volume 1, reunindo as primeiras colunas publicadas aqui.

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