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Recomendo: Encantes, de Antonio Alves

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Recomendo: Encantes, de Antonio Alves

Se a literatura produzida na Amazônia já é tão pouco conhecida, o que diremos da literatura produzida no Acre, esse estado tão novo que ainda vive a se defender da tal lenda de não existir? Não que façamos questão de provar nossa existência como estado, nem um pouco, e nem mesmo de nossas lendas, pois somos as próprias. Mas provas não nos faltam. Um exemplo é Encantes, este belo livro, por muitos motivos, do escritor Antonio Alves, acreano de Brasiléia, autor de outros seis livros. Lançado virtualmente em 2021 apenas em e-book ainda sob os resquícios da pandemia, foi reeditado, impresso e relançado em 2023, pela Edições Milacres, aos pés de cajueiros, mangueiras, cajazeiras e outras mais, em pleno verão amazônico em Rio Branco. Encantes nasceu de uma conversa antiga do autor com o, também acreano, artista plástico Fernando França. De sua vasta produção artística, saíram as ilustrações poéticas que inspiraram as histórias contadas por Antonio Alves e apresentadas num projeto gráfico de alta sensibilidade da artista visual Marina Bylaardt. 

O livro, como objeto, é daqueles que dão gosto de pegar, folhear com calma, admirar, virar pro lado, de ponta cabeça, cheirar e ler. Ler qualquer uma de suas 63 páginas dá sentido e interesse, como quando entramos no meio de uma boa conversa e paramos pra ouvir, querendo saber mais. São treze contos, uns pequeninos, outros maiores, misturados às figuras de Mãe Dágua, Caboquim, Mapinguari, Boto, Pajé entre outros seres da mata. São eles que protagonizam as histórias que se passam todas na floresta pros rumos do Alto Juruá, extremo oeste acreano. Diz o autor, que muito andou por aquelas bandas, ter ouvido por lá grande parte dessas histórias e alguma coisa viu com seus próprios sentidos. Eu acredito, porque a imaginação não tem muito espaço nestes rincões, a realidade é tão forte que não dá para ficar inventando história, não. Causos, relatos. Acho mesmo que é poesia pura (o autor sabe o lugar das palavras e não precisa provar com pontuações gramatiqueiras), tal qual a vida com alma. Tem quem chame de lenda, mito, folclore, no sentido figurado dos termos (para não dizer pejorativo, como a lenda do Acre não existir), naquele que quer dizer mentira, conversa pra boi dormir, invencionice. Folclore sim, no sentido da transmissão oral das tradições e costumes de um povo. Esse costume de bater papo com os seres da floresta é algo bem acreano, amazônico. Só não faz quem não vê, ainda mais atualmente que o povo prefere é conversar com algoritmo e não vê nenhum absurdo nisso. Esse povo que respeita algoritmo, que pede favor pra inteligência artificial, em geral são os que dizem ser Caboquim e Mãe da Lua pura ilusão de gente ignorante da floresta. Cada qual escolhe o invisível que quer para se relacionar. E um não exclui o outro. Só afugenta. 

Antonio Alves conta que o próprio Mapinguari ficou muito tempo sumido, e os Ashaninka e os Huni Kui reclamaram que a caça tinha desaparecido e os parentes estavam passando fome. Foi quando Mapinguari voltou estropiado e contou pro Pajé o que tinha acontecido:  

Contou que vinha das bandas do Xapury, tinha enfrentado uns monstros com chifres tortos e um bando de homens com armas terríveis: uma espingarda que cospe bala muitas vezes seguidas e não precisa parar pra colocar pólvora e chumbo, uma serra que derriba aguano grande em dois talhos e o fogo, muito fogo. 

Malfeitos de quem só vê na floresta, que é pura vida, a morte. Árvore morta, bicho morto, pedra morta e gente que, para eles, não deveria estar viva. Assim como estamos vendo neste instante o extermínio dos Yanomami (e milhares de seres visíveis e invisíveis que os arrodeiam). O garimpo se espalhando e matando tudo o que está em volta. E afugentando os invisíveis, os seres que animam a floresta, que a fazem viva, junto aos demais infinitos seres que ali resistem à desforra dos que incitam a morte. Isso não é de agora, bem sabemos, mas é ainda agora, agorinha que quase não cabemos mais no mundo como espécie pandêmica e destruidora.  

Encantes poderia ser apenas um livro de contos folclóricos, mas não. É um relato dos e sobre os que sobrevivem, é um relato sobre a vida, mesmo que invisível, de um espaço da Terra que existe para gerar e manter a vida do planeta, mesmo daqueles que só fazem o extermínio, o homem está calçado com o medo e tem o peso dos desejos que carrega no coração e na cabeça, como disse Mãe Dágua pro Pajé certo dia, num dos contos do livro.  

Eu não sei para que arrobas me levaria o algoritmo se eu lhe pedisse para me conectar com os encantados da floresta, mas facilmente algum encantado me levaria para um garimpo de cassiterita (minério essencial para a indústria tecnológica), se eu lhe pedisse para me conectar com um algoritmo. Afinal estes invisíveis cibernéticos não são tão invisíveis assim, deixam rastros de destruição desde a origem.  E nesses rastros há só a morte. Eu, que escolho a vida para sempre, sigo encantada pelos Encantes. Há um subtítulo na folha de rosto do livro que diz: livro um. Ou seja, esse é só o primeiro e me alimenta a esperança. Sorte que o interesse pela Amazônia vem reacendendo também nas artes, uma esperança de continuidade da vida. Porque se o interesse pela floresta continuar sendo apenas dos patrões dos algoritmos, futuro não há para nosotros cá. Para quem gosta da vida, encante-se. Encante-se por ela, encante-se pela floresta, pelos seres vivos.  

Encantes, de Antonio Alves. Ilustrações de Fernando França
Ediçõe Milacres, 2023


Natália Jung é Mestre e doutoranda em Estudos Literários pela UFRGS, com formação dupla em Literatura e em Antropologia. Atuou em desenvolvimento socioambiental na Amazônia, escreveu para jornais, sites e revistas, coordenou cineclube, foi professora do ensino básico e superior e é uma das autoras de Depois do Fim (editora Milacres) e Amazônia (selo Off Flip). Vive em Rio Branco – Acre.

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