Recomendações

Recomendo: Fechar os olhos

Change Size Text
Recomendo: Fechar os olhos Foto: Divulgação

“A memória é uma ilha de edição” (Wally Salomão)

O consagrado diretor espanhol, Víctor Erice, volta após 30 anos aos filmes de longa-metragem com Fechar os olhos (Cerrar los ojos), lançado em Cannes em maio de 2023. Seguindo a tradição de diretores já renomados, como foi o caso de Pedro Almodóvar com Dor e Glória (2019), o longa é uma espécie de autoficção de Erice, com referências a sua própria carreira e ao cinema mundial. 

De início, pensamos que seremos conduzidos a uma história investigativa da década de 1940, onde um velho judeu aristocrata pede a um jornalista que encontre sua filha perdida antes que ele morra, entrega-lhe uma foto dela e expõe o desejo de poder ser visto pelos olhos da menina uma última vez. Instigados o bastante, a introdução termina e somos levados ao presente. Acompanhamos a partir de então a jornada de Miguel Garay (Manolo Solo), um diretor de cinema aposentado, que aceita participar de uma entrevista para um programa sensacionalista de true crime em que conta sobre Julio Arenas (Jose Coronado), seu amigo íntimo e ator do papel do jornalista da história anterior (só então entendemos que tratava-se de um filme dirigido pelo próprio Garay, chamado “La mirada del adiós”), mas que desapareceu muitos anos antes. 

Ao longo de mais 2h30 de filme, vemos Miguel Garay processando o retorno da especulação sobre o sumiço do amigo, o que leva-o a relembrar outras perdas, como o filho que morreu, os velhos amigos, o filme inacabado e os amores perdidos. Embora o ritmo do longa seja lento, o que é parte de sua beleza e fundamental para a abstração, não chega a ser cansativo, pois ora esbarra em uma história de investigação (assim como o filme de Garay, diga-se), passando por vários núcleos com diversos acontecimentos. Ao voltar para casa, um trailer em um terreno da Espanha onde planta os próprios alimentos e formou uma comunidade, Miguel recebe uma ligação com pistas de um suposto paradeiro de Julio Arenas, em um asilo tradicional comandado por freiras (não como hóspede, mas zelador). Ele vai até lá e conhece Gardel, um homem que apareceu desmemoriado no asilo muitos anos antes, carregando poucas coisas mas, entre elas, a foto da filha fictícia do velho de “La mirada del adiós”. 

Isso basta para que se perceba que Fechar os olhos tem como um tema central a transferência existente entre cinema e realidade, estabelecendo uma conexão que vem desde o primeiro filme de Erice, O espírito da colmeia (1973). Tanto é assim que, Ana Torrent – a famosa atriz-mirim de olhos arredondados do filme de 1973 e depois de Cria corvos (1976), de Carlos Saura –, volta 50 anos depois também como Ana (assim como foi nos outros filmes), interpretando a única filha de Jose Arenas. De certa forma, sua carreira, que está intimamente ligada a de Víctor Erice, não deixa de ser homenageada por ele mesmo, no que parece ser seu último filme. Mas, mais importante, Erice continua na linha de filmes sobre a experiência do cinema, agora mais maduro (consequentemente, menos lúdico) na composição. Vemos um longa-metragem moderno com cara de narrativa clássica, não um diretor que ficou fadado a imitar a si mesmo, embora algumas fórmulas continuem, como o fade out entre cortes. Manter-se um pouco opaco ao espectador, entretanto, é um truque da direção para que não esqueçamos que estamos vendo um filme, o que se combina à própria experiência dos personagens. 

Os resultados, por fim, são questionamentos acerca das memórias dentro do imaginário do cinema. Ao se perguntar o que teria acontecido com o amigo, sendo possibilidades o suicídio ou a simples mudança de identidade, Garay imagina cinematograficamente (por falta de adjetivo melhor) os últimos momentos de Julio. Erice, em uma das entrevistas, diz que o filme trata de uma dialética entre um personagem que carrega o peso das memórias e outro a quem foi concedido a graça de não saber quem é. O que somos, afinal, se não atores de nós mesmos? O que ou quem criam nossas memórias? Garay mostra o final de “La mirada del adiós” para Gardel dentro de uma sala de cinema desativada, na expectativa que o amigo lembre-se de si mesmo. Todos fecham os olhos, o filme acaba e as luzes se acendem sem termos uma resposta. A vida acaba quando acaba o filme? 

Infelizmente, ainda não há previsão de estreia do longa-metragem no Brasil, mas suspeito que muito dele se discutirá ao longo dos anos. E não há por que ter pressa. 


Caroline Richter é mestranda em Estudos Literários (UFRGS). Pesquisadora de cinema brasileiro. Revisora e tradutora.

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.