Retrato escrito

A ronda dos anjos sensuais, de Reynaldo Moura

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A ronda dos anjos sensuais, de Reynaldo Moura A ronda dos anjos sensuais (1935) é uma novela de Reynaldo Moura, autor nascido em Santa Maria e que se mudou para Porto Alegre aos oito anos de idade. A história narrada no livro de Moura se passa em uma Porto Alegre dos anos trinta e a história era daquelas que prometia embaraçar os leitores de então. Porque trazia aspectos da vida moderna, com questões sexuais que esbarravam em certos tabus. Uma narrativa avançada demais, talvez, para uma capital com ares provincianos como aquela vivida pelo autor.  Por sinal ele declarou para a Vamos ler, revista dos anos 1940, uma rejeição ao seu próprio trabalho, que nunca foi republicado: “Ela é meu primeiro pecado literário. Não gosto. Reneguei-a”. Tenhamos em conta que a novela foi publicada às vésperas do Estado Novo e que essa frase acontece em pleno regime de exceção. Certo é: a novela não fez tanto sucesso, não repercutiu como se esperava. Moura, que era anunciado como um vanguardista, hoje está para lá de esquecido. Então o que vamos fazer agora é – além de um retrato escrito – realizar um breve resgate de memória. Lembraremos da novela para também fazer vir à tona um espaço porto-alegrense que pouco se discutiu na história da literatura.  Para começar, o amanhecer: Madrugada. Alguém lançou do alto do arranha-céu envolto no nevoeiro, a página solta de um jornal. Há uma brecha de luz, lá em cima. No céu ainda embaciado pela fuligem noturna de um vapor de rosa amanhece como o fulgor mel amadurecendo. Asa branca e invertebrada que pairou na vigília do espírito, a página solta de jornal vem descendo silenciosamente na penumbra úmida e volátil d’aurora. Um dia do universo impresso para sempre, com todas as palpitações do mundo, um dia que ninguém nunca mais recordará, nunca mais, nunca mais… Alguém lançou, do alto cor de cinza do arranha-céu, a asa do pássaro que pensa. A folha branca flutuou um instante sobre os terraços da cidade onde a neblina repousa, balançou-se no alto, sobre o silêncio da hora neutra, sobre as antenas metálicas de mil sensibilidades adormecidas, e veio tocar os fios rutilantes do bonde, onde a primeira claridade começa a cintilar sobre o cobre liso e orvalhado. Já não existe mais lá em cima a brecha de luz amarela suspensa no vapor do dia nascendo. Toda a superfície vertical do edifício adquire tons lilases depois de dissipado o transparente nevoeiro. Escorre pelas paredes lisas um fluido quase fosforescente. O arranha-céu se destaca, nítido, sobre o milagre azulado e côncavo da madrugada. É interessante pensar em arranha-céu, sabendo que a referência do texto remete a edifícios muito diferentes desses que recebem o mesmo nome nos dias de hoje. Mas, sim, são esses empreendimentos da arquitetura que na escrita de Moura acabam dando os sinais de avanço urbano em uma cidade que vive uma transformação. A tentativa de se fazer ver, a vontade de ser grande, parecia uma ideia relevante para esse local construído pela narração: Porto Alegre, ao fundo, fulgura […]

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A ronda dos anjos sensuais (1935) é uma novela de Reynaldo Moura, autor nascido em Santa Maria e que se mudou para Porto Alegre aos oito anos de idade. A história narrada no livro de Moura se passa em uma Porto Alegre dos anos trinta e a história era daquelas que prometia embaraçar os leitores de então. Porque trazia aspectos da vida moderna, com questões sexuais que esbarravam em certos tabus. Uma narrativa avançada demais, talvez, para uma capital com ares provincianos como aquela vivida pelo autor.  Por sinal ele declarou para a Vamos ler, revista dos anos 1940, uma rejeição ao seu próprio trabalho, que nunca foi republicado: “Ela é meu primeiro pecado literário. Não gosto. Reneguei-a”. Tenhamos em conta que a novela foi publicada às vésperas do Estado Novo e que essa frase acontece em pleno regime de exceção. Certo é: a novela não fez tanto sucesso, não repercutiu como se esperava. Moura, que era anunciado como um vanguardista, hoje está para lá de esquecido. Então o que vamos fazer agora é – além de um retrato escrito – realizar um breve resgate de memória. Lembraremos da novela para também fazer vir à tona um espaço porto-alegrense que pouco se discutiu na história da literatura.  Para começar, o amanhecer: Madrugada. Alguém lançou do alto do arranha-céu envolto no nevoeiro, a página solta de um jornal. Há uma brecha de luz, lá em cima. No céu ainda embaciado pela fuligem noturna de um vapor de rosa amanhece como o fulgor mel amadurecendo. Asa branca e invertebrada que pairou na vigília do espírito, a página solta de jornal vem descendo silenciosamente na penumbra úmida e volátil d’aurora. Um dia do universo impresso para sempre, com todas as palpitações do mundo, um dia que ninguém nunca mais recordará, nunca mais, nunca mais… Alguém lançou, do alto cor de cinza do arranha-céu, a asa do pássaro que pensa. A folha branca flutuou um instante sobre os terraços da cidade onde a neblina repousa, balançou-se no alto, sobre o silêncio da hora neutra, sobre as antenas metálicas de mil sensibilidades adormecidas, e veio tocar os fios rutilantes do bonde, onde a primeira claridade começa a cintilar sobre o cobre liso e orvalhado. Já não existe mais lá em cima a brecha de luz amarela suspensa no vapor do dia nascendo. Toda a superfície vertical do edifício adquire tons lilases depois de dissipado o transparente nevoeiro. Escorre pelas paredes lisas um fluido quase fosforescente. O arranha-céu se destaca, nítido, sobre o milagre azulado e côncavo da madrugada. É interessante pensar em arranha-céu, sabendo que a referência do texto remete a edifícios muito diferentes desses que recebem o mesmo nome nos dias de hoje. Mas, sim, são esses empreendimentos da arquitetura que na escrita de Moura acabam dando os sinais de avanço urbano em uma cidade que vive uma transformação. A tentativa de se fazer ver, a vontade de ser grande, parecia uma ideia relevante para esse local construído pela narração: Porto Alegre, ao fundo, fulgura […]

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