Retrato escrito

“Estrychnina” e o Guaíba

Change Size Text
“Estrychnina” e o Guaíba

“O sol, em cima, resplandecia; em baixo, as águas faiscavam, à grande luz; no porto, os navios, sob o dossel cerúleo, quedavam-se sonolentos; ao fundo, as ilhas fronteiras, coloridas de um verde esmeraldino, debuxavam as suas formas caprichosas no claro espelho das margens. Pelo canal, o vaporzinho singrava de manso, oculto entre as duas pesadas embarcações, que arrastava, arfando, mas decidido. De súbito, mandando aos ares, num ímpeto vigorosíssimo, o clamor estrídulo, febricitante e triunfal do seu apito, o S. Pedro, desenvolvendo a marcha, abriu carreira, deitando para trás, como trêmula pluma, um encaracolado e espesso rolo fumarento”.

O trecho selecionado aí é da obra Estrychnina. Uma história escrita no final do século dezenove e que nasceu contada por três autores porto-alegrenses: José Paulino Azurenha, José Carlos de Souza Lobo e Mario Totta. Como a obra foi redigida por eles? Disso pouco se sabe. O que se pode dizer é que o valor do romance está, em grande parte, no registro que faz da cidade. O Guaíba que lemos na descrição literária é só um dos poucos momentos dessa Porto Alegre do passado. Há também descrições de festas populares, de modas urbanas, detalhes sobre os edifícios e sobre os tipos de transportes que circulavam na capital gaúcha daquele século retrasado. A primeira edição do livro aconteceu em 1897 e trazia o subtítulo Página romântica, com edição das Officinas typográphicas da Livraria America, Porto Alegre (e segunda edição pelas Artes e Ofícios, cem anos depois, 1997). Sua trama nos apresenta o amor vivido entre Chiquita e Neco Gomes. Uma relação proibida pelas convenções sociais, que vem narrada em meio ao avanço da modernidade e sua evolução vertiginosa. A influência do contexto é uma das características importantes e faz o fluxo narrativo vir registrado com gírias da época e também com os modos de pensar que para nós já representam outros tempos.

Gostou? Então vamos a mais um trechinho desse Guaíba com dose de veneno:

“Em animada palestra continuaram o Neco e a Chiquita em todo o decurso da viagem.

Ao fazer o bonde a curva do Riacho, o rapaz falou à companheira:

— Olha, vejamos pela última vez o sol que lá vai morrendo ao longe. Vê que soberba e sangrenta agonia. Assim é que é bom morrer, sob a paz dolente do crepúsculo, debaixo da magnífica umbela opalina do céu, no seio fecundo da natureza, a mãe augusta do inverno triste, do outono nostálgico, da primavera florida, do estio vivificante. Repara: parece que o sol está a se esconder, gotejando sangue, por trás do verde de esmeralda das ilhas.

E o bonde continuava a rodar suavemente sobre os trilhos, ao toc-toc musical das alimárias mansas”.


Ângelo Chemello Pereira é formado em Publicidade e mestrando em Literatura.

ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.