Retrato escrito

O Viaduto Otávio Rocha em O homem que era 2

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O Viaduto Otávio Rocha em O homem que era 2 “Uma noite, pelas nove horas, mais ou menos, já de regresso, com as escrituras e documentos perfeitamente em ordem, tive de levá-los ao nosso advogado, que morava na rua da Igreja perto do Ginásio Anchieta. A fim de encurtar caminho, resolvi atravessar o “Beco do Poço”, a zona estragada onde estava localizado o baixo meretrício da cidade, apesar de ficar bem no centro da Capital, justamente onde hoje é a Avenida Borges de Medeiros. Chovia torrencialmente. A rua, como sempre, estava imersa em meia treva. Eu caminhava cauteloso, cosido à parede, champinhando na lama da calçada”. Você quer saber quem foi o autor desse pedaço de cidade? Foi Ernani Fornari, um daqueles escritores que a memória literária andou deixando de lado. Ele apresentou muito dessa Porto Alegre provinciana na ficção “O Homem que era 2″. Um livro de 1935, que foi publicado pela então Livraria do Globo e depois daquele ano nunca mais teve outra edição. A história, com a capital gaúcha no pano de fundo, traz o personagem-narrador Justo como figura central da trama. É ele quem conta a história de Bernardo Ramalhão, o tal sujeito “que era 2” do título da obra.  Justo é um jornalista dos anos 1930 e reconstitui para nós, leitores, os fatos do seu próprio passado. Assim ele nos leva a conhecer uma Porto Alegre ainda anterior. Uma cidade dos idos de 1913 e de 1914. A narrativa dá um passeio por lugares remotos, leva a caminhos que não existem mais, invade espaços que ficaram no tempo lá trás. Típico de uma literatura que revela fósseis da antiga vida urbana, como diz o crítico italiano e historiador Franco Moretti.  É acompanhando os pés de Justo ao pisar na lama do Beco do Poço que reencontramos uma representação daquele lugar que se transformou bastante. Vemos o antigo Centro antes do dito quadriênio glorioso das construções de arquitetura (de 1910 a 1914) e que abriu a Avenida Borges Medeiros erguendo junto o Viaduto Otávio Rocha.  Então, Fornari, será que seu personagem Justo pode nos contar mais um pouco daquele dia chuvoso em Porto Alegre? “Assistiam, por entre gritos de troça e gargalhadas e ditos cabeludos, à descida da enxurrada das águas da chuva, que se despencavam, encachoeiradas e negras pela estreitíssima e íngreme ladeira. Como as moradoras do beco aproveitassem esses dias (verdadeiros dias de festa para a cidade imunda) não só para tomarem banho, como para jogarem à rua tudo o que de “supérfluo” possuíam em casa, as águas, engrossadas pelas imundícies, transportavam na sua fuga os mais curiosos e variados “objetos”. Cepas de tamancos, papagaios empalhados, cachorros mortos, restos de comida, farrapos de colchas e de toalhinhas, vasos noturnos com plantas, latas de querosene, marmitas furadas, gaiolas quebradas, cadeiras desconjuntadas, etc, passavam, aos trancos, barulhentos, debaixo das aclamações e das chalaças da soldadesca”. * Pequenas atualizações foram feitas na grafia do texto de Fornari. por exemplo:  Afim de: A fim de querozene: querosene  Ângelo Chemello Pereira é formado em Publicidade e mestrando em Literatura.

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“Uma noite, pelas nove horas, mais ou menos, já de regresso, com as escrituras e documentos perfeitamente em ordem, tive de levá-los ao nosso advogado, que morava na rua da Igreja perto do Ginásio Anchieta. A fim de encurtar caminho, resolvi atravessar o “Beco do Poço”, a zona estragada onde estava localizado o baixo meretrício da cidade, apesar de ficar bem no centro da Capital, justamente onde hoje é a Avenida Borges de Medeiros. Chovia torrencialmente. A rua, como sempre, estava imersa em meia treva. Eu caminhava cauteloso, cosido à parede, champinhando na lama da calçada”. Você quer saber quem foi o autor desse pedaço de cidade? Foi Ernani Fornari, um daqueles escritores que a memória literária andou deixando de lado. Ele apresentou muito dessa Porto Alegre provinciana na ficção “O Homem que era 2″. Um livro de 1935, que foi publicado pela então Livraria do Globo e depois daquele ano nunca mais teve outra edição. A história, com a capital gaúcha no pano de fundo, traz o personagem-narrador Justo como figura central da trama. É ele quem conta a história de Bernardo Ramalhão, o tal sujeito “que era 2” do título da obra.  Justo é um jornalista dos anos 1930 e reconstitui para nós, leitores, os fatos do seu próprio passado. Assim ele nos leva a conhecer uma Porto Alegre ainda anterior. Uma cidade dos idos de 1913 e de 1914. A narrativa dá um passeio por lugares remotos, leva a caminhos que não existem mais, invade espaços que ficaram no tempo lá trás. Típico de uma literatura que revela fósseis da antiga vida urbana, como diz o crítico italiano e historiador Franco Moretti.  É acompanhando os pés de Justo ao pisar na lama do Beco do Poço que reencontramos uma representação daquele lugar que se transformou bastante. Vemos o antigo Centro antes do dito quadriênio glorioso das construções de arquitetura (de 1910 a 1914) e que abriu a Avenida Borges Medeiros erguendo junto o Viaduto Otávio Rocha.  Então, Fornari, será que seu personagem Justo pode nos contar mais um pouco daquele dia chuvoso em Porto Alegre? “Assistiam, por entre gritos de troça e gargalhadas e ditos cabeludos, à descida da enxurrada das águas da chuva, que se despencavam, encachoeiradas e negras pela estreitíssima e íngreme ladeira. Como as moradoras do beco aproveitassem esses dias (verdadeiros dias de festa para a cidade imunda) não só para tomarem banho, como para jogarem à rua tudo o que de “supérfluo” possuíam em casa, as águas, engrossadas pelas imundícies, transportavam na sua fuga os mais curiosos e variados “objetos”. Cepas de tamancos, papagaios empalhados, cachorros mortos, restos de comida, farrapos de colchas e de toalhinhas, vasos noturnos com plantas, latas de querosene, marmitas furadas, gaiolas quebradas, cadeiras desconjuntadas, etc, passavam, aos trancos, barulhentos, debaixo das aclamações e das chalaças da soldadesca”. * Pequenas atualizações foram feitas na grafia do texto de Fornari. por exemplo:  Afim de: A fim de querozene: querosene  Ângelo Chemello Pereira é formado em Publicidade e mestrando em Literatura.

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