Retrato escrito

Marrom e Amarelo, de Paulo Scott

Change Size Text
Marrom e Amarelo, de Paulo Scott Não é que Porto Alegre apareça aqui e ali no romance Marrom e Amarelo (Alfaguara, 2019), de Paulo Scott. Não, a capital gaúcha se faz presente o tempo todo, ela envolve a vida inteira das personagens, marca momentos importantes na narrativa. É dela que saem os acontecimentos que conectam todos os pontos da ficção. Mesmo quando se está em Brasília — outra cidade que também aparece — Porto Alegre interfere por telefone, interfere por estar nas entranhas de Federico, o personagem-narrador. Dá uma olhada nesse trecho, logo a seguir, que conta sobre o que ele sente. Federico vai falar um pouco do medo que dá estar sentado no banco de madeira do Xis do Bodinho. E o ponto aqui, na seleção que vamos ler, não é a afirmação do medo. É a negação. Tudo aquilo que não dá medo para o personagem é também aquilo que nos revela um bocado das coisas que acontecem no seu bairro, o Partenon. É como ele, Federico, entende e percebe as coisas do seu lugar. Ao mesmo tempo é tudo o que nos permite olhar o cenário junto com ele. “Tenho medo não por causa do Bodinho, o Fernando, proprietário do trailer, que é um cara amistoso, gente fina, como gente fina também são as duas funcionárias dele, a Salete e a Mara, não por causa do trailer ficar neste terreno do lado sul da Bento Gonçalves, o lado barra-pesada da Bento, o lado do morro, ao pé do morro, o lado das vilas, dos becos, das malocas, das ruas sem pavimento, dos esgotos a céu aberto, não por causa da polícia civil, da polícia militar, do exército, passando nas viaturas só no bico da rapaziada, ou invadindo o passeio, parando na base da freada a seco nesta brita do estacionamento pra dar atraque, enquadrada, esculacho geral, não por causa dos subchefes do tráfico do morro, uns caras meia dúzia de anos mais velhos do que eu, que descem aqui pra tomar uma cerveja, comer um xis coração com ovo, o melhor do bairro, deixando aquele suspense no ar, porque chegam quietos, as armas mais ou menos à vista, e comem de butuca, filmando de canto os que estão por aqui, não por eu ter um pai que é da polícia, um nome importante na polícia do Rio Grande do Sul, chefe supremo dos peritos do Rio Grande do Sul de todos os tempos, e isso ser uma pecha colada na minha testa para muitos que vêm aqui, uma pecha que, em tese, faz de mim um cara intocável porque dificilmente, nesta área, alguém se mete com filho de polícia, mas que, nunca dá pra saber, pode motivar ataque inesperado de alguém que não goste de polícia”. No livro nós temos uma Porto Alegre periférica onde nasce o protagonista. Mas a cidade se expande e é nela que se acompanha a infância de Federico e de seu irmão Lourenço, é onde se dá a adolescência dos dois. Uma cidade que tem o percurso desses […]

Quer ter acesso ao conteúdo exclusivo?

Assine o Premium

Você também pode experimentar nossas newsletters por 15 dias!

Experimente grátis as newsletters do Grupo Matinal!

Não é que Porto Alegre apareça aqui e ali no romance Marrom e Amarelo (Alfaguara, 2019), de Paulo Scott. Não, a capital gaúcha se faz presente o tempo todo, ela envolve a vida inteira das personagens, marca momentos importantes na narrativa. É dela que saem os acontecimentos que conectam todos os pontos da ficção. Mesmo quando se está em Brasília — outra cidade que também aparece — Porto Alegre interfere por telefone, interfere por estar nas entranhas de Federico, o personagem-narrador. Dá uma olhada nesse trecho, logo a seguir, que conta sobre o que ele sente. Federico vai falar um pouco do medo que dá estar sentado no banco de madeira do Xis do Bodinho. E o ponto aqui, na seleção que vamos ler, não é a afirmação do medo. É a negação. Tudo aquilo que não dá medo para o personagem é também aquilo que nos revela um bocado das coisas que acontecem no seu bairro, o Partenon. É como ele, Federico, entende e percebe as coisas do seu lugar. Ao mesmo tempo é tudo o que nos permite olhar o cenário junto com ele. “Tenho medo não por causa do Bodinho, o Fernando, proprietário do trailer, que é um cara amistoso, gente fina, como gente fina também são as duas funcionárias dele, a Salete e a Mara, não por causa do trailer ficar neste terreno do lado sul da Bento Gonçalves, o lado barra-pesada da Bento, o lado do morro, ao pé do morro, o lado das vilas, dos becos, das malocas, das ruas sem pavimento, dos esgotos a céu aberto, não por causa da polícia civil, da polícia militar, do exército, passando nas viaturas só no bico da rapaziada, ou invadindo o passeio, parando na base da freada a seco nesta brita do estacionamento pra dar atraque, enquadrada, esculacho geral, não por causa dos subchefes do tráfico do morro, uns caras meia dúzia de anos mais velhos do que eu, que descem aqui pra tomar uma cerveja, comer um xis coração com ovo, o melhor do bairro, deixando aquele suspense no ar, porque chegam quietos, as armas mais ou menos à vista, e comem de butuca, filmando de canto os que estão por aqui, não por eu ter um pai que é da polícia, um nome importante na polícia do Rio Grande do Sul, chefe supremo dos peritos do Rio Grande do Sul de todos os tempos, e isso ser uma pecha colada na minha testa para muitos que vêm aqui, uma pecha que, em tese, faz de mim um cara intocável porque dificilmente, nesta área, alguém se mete com filho de polícia, mas que, nunca dá pra saber, pode motivar ataque inesperado de alguém que não goste de polícia”. No livro nós temos uma Porto Alegre periférica onde nasce o protagonista. Mas a cidade se expande e é nela que se acompanha a infância de Federico e de seu irmão Lourenço, é onde se dá a adolescência dos dois. Uma cidade que tem o percurso desses […]

Quer ter acesso ao conteúdo exclusivo?

Assine o Premium

Você também pode experimentar nossas newsletters por 15 dias!

Experimente grátis as newsletters do Grupo Matinal!

ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.