Retrato escrito

Um conto de Natalia Borges Polesso no livro Amora

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Um conto de Natalia Borges Polesso no livro Amora Hoje, especificamente, estou na rodoviária de Porto Alegre, e tu deve entender a implicação de caos nesse fato. Estou ilhada. A média de atraso é de três horas. As estradas estão alagadas e sofrendo interdições intermitentes. Acabo de ver, numa tela ensebada de televisão, que a rodovia está parcialmente alagada no sentido Porto Alegre-Canoas, o que significa que não vou para casa tão cedo, por isso, no momento, eu não sei se há algo para gostar em dias de chuva, mas não quero dizer que os odeio. Já deu para perceber onde estamos, certo? O dia é de chuva, a rodoviária está caótica, o trânsito que leva para o interior gaúcho praticamente não anda. É assim que Porto Alegre aparece no conto Wasserkur ou alguns motivos para não odiar dias de chuva. A narrativa de Natalia Borges Polesso, que compõe o livro Amora, é feita em primeira pessoa e nos coloca na condição de receptores de uma mensagem. Parece que estamos na posição destinatária, parece que sofremos um deslocamento para o lugar da personagem a quem se dirigiu o texto. Você também percebe assim? Entendo, dá para ler de outra maneira. Se olharmos a citação mais uma vez talvez estejamos seguindo a caneta de quem escreve. Podemos, se for assim, acompanhar o exato momento da escritura. Acho até que fica mais interessante, será que não? Em um dado momento do conto nós lemos: Escrevo essas frustrações úmidas nas margens de um jornal. Não é um tanto curioso? A narradora escreve nos cantos de uma reportagem, na borda de uma crônica, ao lado de uma manchete. E nós estamos ali espiando, presenciando aquele momento na rodoviária. Lemos ao mesmo tempo em que as linhas estão sendo redigidas, nos intrometendo na intimidade das personagens. E o retrato escrito da cidade vai ganhando forma nessa chuva toda. Vamos entendendo ainda mais esse ponto de partidas e chegadas no qual se pode usar o tempo para escrever. Momento para reunir um bocado de ideias que revelam sentimentos intensos. Mas não fica só por aí. Tem uma hora em que a cidade não está dada por completo à leitora e ao leitor. Não vemos um ponto específico: rua tal com rua tal. Mas temos a total percepção de que a descrição dá conta de nos apresentar o que acontece no ambiente urbano de Porto Alegre. E isso vem do desgosto da personagem ao contar como se sente nesse espaço social. Ela diz assim: Eu não gosto do lixo que se acumula mais visivelmente nas calçadas e sarjetas, não gosto das pessoas que caminham com o guarda-chuva aberto sob as marquises, sendo que poderiam dar espaço aos que não tem um, não gosto de carros que avançam sem dar preferência para pedestres ensopados e não gosto do cheiro das pessoas também, especialmente daquelas que fumam, o cheiro de cigarro se potencializa na umidade. Dá para afirmar que tem um bocado da capital gaúcha nesse trecho. Esse desgostar faz ver a cidade sem dar o lugar, sem […]

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Hoje, especificamente, estou na rodoviária de Porto Alegre, e tu deve entender a implicação de caos nesse fato. Estou ilhada. A média de atraso é de três horas. As estradas estão alagadas e sofrendo interdições intermitentes. Acabo de ver, numa tela ensebada de televisão, que a rodovia está parcialmente alagada no sentido Porto Alegre-Canoas, o que significa que não vou para casa tão cedo, por isso, no momento, eu não sei se há algo para gostar em dias de chuva, mas não quero dizer que os odeio. Já deu para perceber onde estamos, certo? O dia é de chuva, a rodoviária está caótica, o trânsito que leva para o interior gaúcho praticamente não anda. É assim que Porto Alegre aparece no conto Wasserkur ou alguns motivos para não odiar dias de chuva. A narrativa de Natalia Borges Polesso, que compõe o livro Amora, é feita em primeira pessoa e nos coloca na condição de receptores de uma mensagem. Parece que estamos na posição destinatária, parece que sofremos um deslocamento para o lugar da personagem a quem se dirigiu o texto. Você também percebe assim? Entendo, dá para ler de outra maneira. Se olharmos a citação mais uma vez talvez estejamos seguindo a caneta de quem escreve. Podemos, se for assim, acompanhar o exato momento da escritura. Acho até que fica mais interessante, será que não? Em um dado momento do conto nós lemos: Escrevo essas frustrações úmidas nas margens de um jornal. Não é um tanto curioso? A narradora escreve nos cantos de uma reportagem, na borda de uma crônica, ao lado de uma manchete. E nós estamos ali espiando, presenciando aquele momento na rodoviária. Lemos ao mesmo tempo em que as linhas estão sendo redigidas, nos intrometendo na intimidade das personagens. E o retrato escrito da cidade vai ganhando forma nessa chuva toda. Vamos entendendo ainda mais esse ponto de partidas e chegadas no qual se pode usar o tempo para escrever. Momento para reunir um bocado de ideias que revelam sentimentos intensos. Mas não fica só por aí. Tem uma hora em que a cidade não está dada por completo à leitora e ao leitor. Não vemos um ponto específico: rua tal com rua tal. Mas temos a total percepção de que a descrição dá conta de nos apresentar o que acontece no ambiente urbano de Porto Alegre. E isso vem do desgosto da personagem ao contar como se sente nesse espaço social. Ela diz assim: Eu não gosto do lixo que se acumula mais visivelmente nas calçadas e sarjetas, não gosto das pessoas que caminham com o guarda-chuva aberto sob as marquises, sendo que poderiam dar espaço aos que não tem um, não gosto de carros que avançam sem dar preferência para pedestres ensopados e não gosto do cheiro das pessoas também, especialmente daquelas que fumam, o cheiro de cigarro se potencializa na umidade. Dá para afirmar que tem um bocado da capital gaúcha nesse trecho. Esse desgostar faz ver a cidade sem dar o lugar, sem […]

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