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“8 Desertos de Erros” promove arqueologia colaborativa de imagens

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“8 Desertos de Erros” promove arqueologia colaborativa de imagens Apropriação de Anelise de Carli em "8 Desertos de Erros"

Em 2020, o artista visual Leo Caobelli contava ao site – relembre aqui – sobre as origens do Museu Particular de Afetos Perdidos e sua coleta de fotografias e HDs em feiras de rua, calçadas e mesmo no lixo – ainda que, àquela época, nos meses iniciais de pandemia, o pânico em relação a superfícies não fosse a melhor companhia para sair revirando coisas por aí.

Passados os tempos de caminhadas solitárias para enfrentar o isolamento e com mais segurança para mexer em materiais abandonados e encontrar pessoas, Caobelli lança nesta sexta-feira (18/3), a partir das 19h, no Agulha (R. Conselheiro Camargo, 300), o projeto 8 Desertos de Erros, que reúne zines digitais com a proposta de uma arqueologia de imagens encontradas em HDs descartados.

As publicações digitais da iniciativa, disponíveis online, foram criadas pelos artistas Anelise de Carli, Cristiano Sant’Anna, Henrique Fagundes, Isabel Ramil, Letícia Lopes, Letícia Lampert, Marcelo Armesto e Vicente Carcuchinski. Na noite do lançamento, haverá também duas sessões (às 20h30 e 22h) de uma performance audiovisual – igualmente criada a partir da coleta de HDs – reunindo Carina Levitan, Carlos Ferreira, Viridiana e Caobelli.

Apropriação de Cristiano Sant’Anna em 8 Desertos de Erros

Procedimento central do projeto, a apropriação também se faz presente no título, inspirado em uma passagem do conto William Wilson, de Edgar Allan Poe: “Desejaria que descobrissem para mim, entre os pormenores que estou a ponto de relatar, algum pequeno oásis de fatalidade, perdido num deserto de erros”. 

A coleta de HDs em locais de reciclagem de lixo eletrônico já levou Caobelli a cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Lagos, na Nigéria. O artista também se mantém atento a caçambas, calçadas e feira. Os materiais levados para casa são catalogados conforme local de compra, saída de campo e resultado do teste de leitura dos arquivos.

Cartaz de 8 Desertos de Erros

Como premissa, Caobelli e os demais artistas que integram o projeto garantem o anonimato dos proprietários originais dos HDs. “Embora a privacidade tenha se diluído como um valor menor nesse novo século em que tudo é automaticamente compartilhado nas redes, retrabalhar e ressignificar essas imagens de arquivo, ainda garantindo a privacidade de seus criadores, é nosso exercício de ética pessoal, uma ética do sujeito e também desse grupo que cria em colaboração”, afirma o diretor de 8 Desertos de Erros.

Saiba mais detalhes na entrevista com Leo Caobelli.

Como surgiu o projeto?

Os Desertos de Erros, como um todo, surgem do meu interesse pelo arquivo, pela forma que colecionamos, catalogamos e guardamos coisas. Ainda em 2020, mostrei parte do material que eu mesmo coleciono no Museu Particular dos Afetos Perdidos (MPAP). No caso do MPAP, essas memórias afetivas foram perdidas de forma física, em álbuns, slides e cópias fotográficas. Desde a metade da década passada, porém, meu foco de interesse passou a se voltar para os HDs, os análogos digitais aos álbuns de antigamente.

Diferentemente da coleção de álbuns, quando consigo acessar o conteúdo, ver as fotos, e escolher se as quero em minha coleção, com os HDs essa escolha se dá pela latência: encontro um HD no brique, no lixo, ou em um galpão de reciclagem, mas não tenho como saber o que tem nele. Esse mistério do que pode conter esse pequeno aparato da informática me interessa muito. Foi assim que, em 2015, comecei um mestrado no Instituto de Artes da UFRGS já com os HDs como um centro de pesquisa. Agora, em 2020, ele se desdobrou em um doutorado, pensando ainda nessa arqueologia de mídia obsoleta, mas esse processo em colaboração com artistas de diferentes disciplinas.

Apropriação de Letícia Lampert em “8 Desertos de Erros”

Como você selecionou os artistas que integram o projeto?

São escolhas afetivas, claro, mas de um afeto permeado pela proximidade de interesses, métodos e pesquisas. Ao mesmo tempo que queria uma diversidade de perfis e linguagens, de formas de lidar com arquivos e de produzir a partir deles, também queria que fossem pessoas próximas de alguma forma. Preciso dessa cumplicidade do acessar junto. É uma relação do colecionador, de alguém que tem um tesouro particular para compartilhar, mas que vê nessa partilha a necessidade da confiança mútua. Ver e pensar no que se fará ser visto em uma edição aberta. É um processo de confiar no outro e ao outro. 

Leo Caobelli. Foto: Arquivo pessoal

Como foram as trocas nessas colaborações?

Sem teorizar demais, mas aqui penso muito no conceito que o filósofo da educação Jorge Larrosa traz para a conversação como linguagem da experiência. Para ele, o ato de conversar, esse versar com o outro, depende dessas pessoas que se põem em conversa. É algo pessoal, sobre si e sobre o outro, não é a língua muitas vezes impessoal dos colóquios, da linguagem técnica ou crítica, é a afirmação de uma língua que depende da experiência, da troca, dessa partilha muitas vezes ruidosa, cacofônica, cheia de falhas e erros.

Saindo da teoria e pensando na prática, por exemplo, quando pensei em um deserto que pudesse trabalhar com a pornografia, que muitas vezes está em diversos HDs, logo pensei em chamar a Isabel Ramil para pensar junto no que seria esse Deserto. Começamos essa conversa e logo a Bel já vem com o nome perfeito: Deserto de Eros, a subtração de uma consoante do título original do projeto e que tanta potência trazia a esse desert. Pensamos em recortar as imagens originais, repensar a relação de explícito e implícito nessas imagens carregadas de fetichismo, nas representações dos corpos online. Criei uma imagem inicial, uma “colagem pano de fundo” que me parecia, se não bem resolvida, bem problematizada.

Fomos assim adicionando camadas, colocando imagens em cima de imagens e fui cobrindo partes dos corpos que me pareciam mais explícitas, quando a Bel me pergunta diretamente por que eu só tapava o que julgava explícito nos corpos masculinos, enquanto deixava a nudez de corpos femininos descoberta? Em minha defesa tentava justificar que os corpos femininos ali eram desenhos, não fotos, e que por isso não me pareciam diretamente explícitos. E ela segue: “Mas o desenho é justamente a hiper-objetificação desse corpo. O corpo feminino exposto, dessa forma, já é o aceito, por isso não te é explícito”.

Claro, eu chamo a Bel para esse trabalho justamente por ser o campo de pesquisa dela, certamente sabia que a contribuição dela seria precisa, mas não imaginava que fosse tão cirúrgica. Não apenas passava a ver meu lado censor, pudico, em muitos dos recortes e sobreposições, mas via de forma explícita todo sexismo visual de uma formação heteronormativa.

Essa é a experiência da conversa para Larrosa, de nenhuma outra forma, sem que fosse esse material, sem que fosse essa artista, sem que fosse esse momento, essa experiência me atravessaria dessa forma. Acho que essa é a grande potência desse Deserto de Erros.

Apropriação de Vicente Carcuchinski em “8 Desertos de Erros”

Poderia nos dar um panorama das abordagens dos artistas no projeto?

Tem sido incrível ver essa multiplicidade de abordagens. Enquanto tinha artista que se grudava de cara em algo que encontrava no HD e já era quase um match imagético, outras pessoas tinham seu tempo de maturar imagens, deixar decantar, absorver essa vertigem de milhares de imagens banais, do cotidiano.

Se de um lado o Vicente Carcuchinski, por exemplo, chega ao seu argumento do zine ao encontrar imagens de um apaixonado por carros que constrói uma réplica do dodge da série “os gatões” (e chega a correr com ele no autódromo de Tarumã) e que – ao finalizar sua edição – faz essa imagem indicial quase desaparecer, na outra ponta o Cristiano Sant’Anna encontra fotos de um churrasco de família e pessoas dançando e sabe instantaneamente que está ali o trabalho, que são aquelas pessoas dançantes o centro da narrativa, elas não desaparecerão.

Já na parte das artes sonoras, a abordagem múltipla também se faz presente. A Viridiana, por exemplo, pegou arquivos de áudio dos dois primeiros HDs e, pouco tempo depois, já mandou as duas faixas base da sua parte de direção na performance sonora, e ficamos de queixo caído ao escutar. Musa experimental da improvisação! Fiquei de cara 😀 Vocês têm que escutar o que essa mulher fez com a trilha de abertura do Windows 98! Lembro de dar o play pela primeira vez e pensar que um computador nunca tinha iniciado de forma tão sublime!

Já a Carina Levitan tomou seu tempo, desconstruiu um violão e criou nele uma caixa sonora para colocar pequenas esculturas sonoras e pedais de efeito por onde passam trechos de áudio vindos dos HDs 3 e 4. Novamente me vem a conversa do Larrosa, é muita sorte poder conversar com tanta gente incrível. 

Apropriação de Marcelo Armesto em “8 Desertos de Erros”

Por fim, nos conta um pouco mais sobre os outros componentes do projeto, além dos zines.

É engraçado pensar no zine online, porque o zine é essa publicação que todas as pessoas conseguem imaginar, lembram de algum que já viram, tiveram ou produziram, o Santo Graal do faça você mesmo, mas que é tão difícil de definir o que é, justamente porque se for fiel ao faça você mesmo, que cada um faça do seu jeito. Então esse site, plataforma, é uma casa, um território para esses zine-desertos.

Para além dos zines, o site tem também uma camada audiovisual, essa performance sonora que mencionei, em que eu, Viridiana, Carina Levitan e Carlos Ferreira improvisaremos ao vivo no Agulha, em duas sessões, uma trilha para 30 minutos de vídeos recuperados dos HDs. Tanto a trilha quanto a edição final se dão no palco e, justamente por isso, faremos duas sessões, para que nunca seja a mesma versão, sempre algo mudará na trilha, na edição do vídeo. Cada conversa produzirá um resultado distinto.

Talvez essa seja minha nova coleção: colecionar as variadas interpretações que surgem de tantas boas conversas. Penso também na continuidade dessa conversação, já que em junho devem ser lançados outros 10 desertos, com outras colaborações. Ou seja, definitivamente é mais uma manifestação do meu instinto de colecionar, catalogar e disponibilizar essas coleções ao acesso público. 

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