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“Propriedade” denuncia sociedade de classes blindada

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“Propriedade” denuncia sociedade de classes blindada Vitrine Filmes/Divulgação

Um dos filmes brasileiros mais comentados no último ano dentro do circuito de festivais, Propriedade (2022) entra em cartaz nesta quinta-feira (21/12). Com direção de Daniel Bandeira, o tenso thriller acompanha o drama de uma rica e reclusa estilista que se enclausura em seu carro blindado para se proteger de uma revolta dos trabalhadores da fazenda de sua família.

Também autor do roteiro, o realizador Daniel Bandeira diz que se relaciona há muito com o conceito desenvolvido no filme. Fã de suspense, o diretor escreveu o argumento a princípio como um exercício formal sobre enclausuramento – no entanto, a ideia passou a receber contornos políticos ao perceber a partir de 2010 um país mais polarizado do que nunca.

“Havia aquele gráfico da apuração das eleições, do Norte vermelho e do Sul azul. Então, essa ideia original acabou sendo infiltrada por essa percepção de que o Brasil estava dividido. Ele sempre esteve dividido, na verdade, mas isso acabou me afetando de forma inédita”, explica Bandeira, que já colaborou como montador com vários realizadores do cinema pernambucano, como Kleber Mendonça Filho, Camilo Cavalcanti e Gabriel Mascaro.

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O filme começa em alta voltagem com uma sequência gravada em celular mostrando a protagonista (Malu Galli) como refém em um episódio policial na rua de uma cidade grande que termina de forma violenta. Em seguida, a ação avança no tempo e se desloca para o ambiente rural, no interior de Pernambuco, onde o restante da trama vai se desenrolar.

Propriedade acaba sendo um comentário também sobre como a violência que acontece na cidade tem suas raízes muito profundas, que retrocedem no espaço. No campo e no tempo, porque são questões muito antigas, muito históricas. Então, no final de contas, a gente acaba vendo somente o efeito imediato dessa opressão na cidade, muitas vezes não se dando conta de que a origem disso está no campo, está na história”, acrescenta o cineasta.

O longa foi rodado entre setembro e outubro de 2018, às vésperas do primeiro turno da eleição presidencial daquele ano, em uma fazenda no município pernambucano de São José da Coroa Grande. Com o protagonismo da narrativa muitas vezes concentrado em Tereza e Dona Antônia, personagens respectivamente interpretadas por Malu Galli e Zuleika Ferreira, Propriedade apresenta essas duas mulheres como representantes da incomunicabilidade entre as diferentes esferas sociais no país. “Eu acho que a gente vive em um momento em que é muito difícil se colocar no lugar do outro, de entender as motivações do outro. E, com isso, a gente acaba perdendo as nuances, as motivações, coisas que a gente poderia usar para tentar resolver nossas diferenças.”

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A partir dessa oposição, a história vai contrapondo as motivações de cada lado. “Eu acho que é nisso que reside a grande tragédia, não só da história do filme, mas da história dos nossos tempos. E que só quando rompemos essa blindagem, ou quando abrimos a porta, ou quando descemos o vidro para poder falar com o outro, que nós temos uma condição de iniciar um diálogo, de estabelecer um clima de resolução de diferenças, resolução de problemas. Até lá, a incomunicabilidade é o motor da nossa tragédia”, reflete Bandeira, que estreou na direção de longas com Amigos de Risco (2007), um drama igualmente tenso estrelado por Irandhir Santos.

Propriedade foi exibido em festivais brasileiros e internacionais de prestígio, como o Festival de Berlim, o Edimburg International Film Fest e o espanhol Sitges – especializado em cinema fantástico e de gênero. Na quarta-feira (20/12), estava programada uma sessão do filme no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), dentro do programa The Contenders 2023 – um recorte com as obras mais influentes e importantes dos últimos 12 meses.

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Propriedade tem conseguido se comunicar com plateias estrangeiras, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, não somente em termos de impacto ou linguagem. Eles conseguem fazer essa relação entre a nossa história recente e a tensão que acontece no filme. Pensado numa realidade específica, eu acho que ele também ativa alguns botões, também puxa algumas cordinhas nos conflitos de classe da forma como existem nos países onde ele é exibido”, conclui o diretor e roteirista.

Na entrevista exclusiva a seguir, o cineasta Daniel Bandeira e as atrizes Malu Galli e Zuleika Ferreira falam sobre a rodagem de Propriedade, cinema de gênero e a atualidade social da urgente temática do filme.

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Passados cinco anos da rodagem de Propriedade, vocês acham que mudou alguma no Brasil mostrado no filme em relação ao país da atualidade?

Daniel Bandeira – O filme ficou mais pertinente agora. Durante esse tempo, as questões de luta de classes, desigualdade econômica e enfrentamento à escravidão sistêmica em que a gente vive se acentuaram. As discussões se tornaram mais pungentes, mais efetivas. O filme ficou mais urgente ainda nestes cinco anos.

Zuleika Ferreira – Pra quem anda na rua, entra em ônibus, vai para um hospital público, a diferença é pungente. Estamos nos reerguendo. Essa mudança já ocorreu, a situação crítica está mudando, a realidade já está bem outra.

Malu Galli Acho que houve uma piora. O agronegócio tem muito poder no país. Sempre teve, mas agora eles estão desaforados. Estão muito à vontade em transformar o Brasil em uma fazenda com trabalho análogo à escravidão. Essa discussão está muito mais aguda neste momento, o país está muito mais polarizado. Então o filme vai ficando cada vez mais importante.

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Muitos dos melhores filmes brasileiros recentes partem das regras e referências do cinema de gênero para apresentarem contundentes críticas e radiografias sociais e políticas do país. Como você avalia essa produção, que quase se configura como uma tendência cinematográfica?

Bandeira – O cinema de gênero, principalmente da época da Retomada (entre 1995 e 2002) até aqui, nunca esteve na evidência da produção cinematográfica brasileira. Essa produção vinha muito em função do trabalho de realizadores que se interessavam especificamente por esses mecanismos e linguagens. O cinema de gênero sempre foi como alvo de muito preconceito, como se, por ter esse viés comercial, ele automaticamente desautorizasse qualquer discurso de viés político e social. Acho que o tempo e o acirramento dos ânimos vêm fazendo com que o cinema de gênero tenha devolvido a sua importância de se comunicar diretamente com as pessoas e com um público mais amplo. Agora, de que forma essa comunicação acontece e que tipos e ideologias esse que vou chamar de novo cinema de gênero vai trazer eu realmente não sei. Sei que é uma arena que está aberta e está pautando o cinema brasileiro pós-pandemia.

Tereza é uma mulher que se sente permanentemente acuada, mesmo antes de ter se trancar no carro blindado do marido. Como foi a sua preparação para interpretar essa personagem?

Malu – Foi uma preparação muito objetiva, de entender a movimentação dela dentro do carro, entender o tamanho dos gestos e das expressões, porque a câmera estaria muito próxima. Então, à medida que eu entendi que era uma atuação muito pra dentro, muito voltada para as sensações internas, isso foi superimportante. Foi um trabalho separado do resto do elenco, que trabalhou junto, coletivamente.

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A angústia da protagonista presa em um espaço exíguo é compartilhada pelo espectador durante praticamente o filme inteiro. Comente como foram as filmagens em um set tão claustrofóbico, por favor.

Malu – Foi muito divertido. Eu não estava sozinha dentro do carro, tinham três, quatro pessoas às vezes. A gente viveu muito proximamente aquela experiência da cena, eu trocava muito com o fotógrafo, o assistente, o câmera. Foi um trabalho que não era solitário. Acabo de me contradizer com o que falei na outra resposta, que foi um trabalho muito voltado pra dentro… Mas, por outro lado, estava sempre em relação com a câmera e dialogando com aquela equipe. Foi muito prazeroso e leve, apesar do tema e do estado emocional da personagem. Filme de ação é muito divertido, muito mais do que filme de drama.

Como foi trabalhar com um elenco que mistura atores profissionais e não profissionais?

Zuleika – Eu costumo dizer que não sou uma atriz profissional. Não gosto muito desta palavra profissional. Não consigo nem entender o que é ser uma atriz profissional ou não profissional. Eu sou uma atriz. Não teve essa diferença, acho que foi o que mais me tocou. Foi muito coeso, com todo mundo com muita vontade de fazer, na mesma sintonia.

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Propriedade exibe na tela uma variedade de rostos brasileiros desconhecidos do público, misturando atores e atrizes profissionais com não profissionais. Como foi feita a escolha do elenco?

Bandeira – A escolha do grupo de trabalhadores foi uma seleção muito extensa e intensa, porque não bastava somente escolher talentos individuais. E eu realmente tive acesso a atores fenomenais. Mas me interessava também esse senso e conjunto, de comunidade. Escolher esse grupo de atores que tivesse essa sinergia, mas que não fosse necessariamente harmônica, em que todo mundo concorda com todo mundo, e sim em que todos escutassem uns aos outros. A partir dessa seleção, esse grupo inicial se encontrou e desenvolveu essa sinergia que aprimorou o filme, que tornou mais palpável essas personalidades, esses indivíduos. Essa dedicação que cada um faz ao encontro de seu próprio personagem dentro do coletivo faz toda a diferença para o filme.

Falando em atuação, a sempre ótima Malu Galli impressiona com sua personagem em uma aflitiva condição enclausurada. Como foi trabalhar com a atriz?

Bandeira – A Malu já tinha um lugar muito interessante na forma como eu a via, sobretudo nos trabalhos de TV, porque eu não tinha acesso às peças de teatro. Me interessava a forma como ela me inspirava empatia, e me interessava essa empatia também como estratégia de aproximação com o público. Quando vi os materiais das peças de teatro, percebi o atrito que, além de ter essa característica de relacionamento rápido com o público, ela tinha a sagacidade de trabalhar com essa expectativa, com a própria imagem, e de trabalhar com a manipulação dessa imagem em função da narrativa. É preciso esperteza e dedicação pra ter esse desapego com a própria imagem e jogar junto, rumo a um resultado desconhecido. Essa disposição continua carimbando até hoje, cinco anos depois dessa escolha.

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Quais são seus próximos projetos?

Malu – Vou começar em janeiro um filme do Miguel Falabella, uma peça dele com a Maria Carmem Barbosa que vai para o cinema, chamada Querido Mundo. É uma comédia romântica, sou eu e o Eduardo Moscovis.

Bandeira – Estou desenvolvendo o próximo projeto, ele se chama Expresso Vermelho. Ele é um filme de perseguição de moto no futuro. Muito rápido, muito intenso, temperatura altíssima. Mas ele também tem esse olhar muito cuidadoso sobre a desumanização do trabalho, a uberização do trabalho. Eu sigo no cinema de gênero, mas como um veículo pra ele comentar o que está acontecendo agora. Esse projeto foi selecionado para o Pop Up Film Residency Paradiso, que é um programa internacional de mentorias.

Zuleika – Estou começando um trabalho de teatro, chamado Noite, e estou apaixonada pelo cinema. Espero ansiosamente por convites! Acabei de filmar em outubro Edificante, do Marcelo Lordello. Quero fazer mais cinema!

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Propriedade: * * * *

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Assista ao trailer de Propriedade:

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