Fotografia | Reportagens

Paisagens do FestFoto POA 2021

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Paisagens do FestFoto POA 2021 Foto: Thiago Guimarães Azevedo

A última matéria da nossa série sobre os fotógrafos que participam do FestFoto POA 2021 – relembre as anteriores aqui e aqui – se encerra com três entrevistas. Começamos com o paraense Thiago Guimarães Azevedo, que investiga as relações entre o visual, o invisível e o imaginado das paisagens amazônicas em Onde os Sonhos Se Escondem. Do Norte do país, migramos para a região de Emilia Romagna, na Itália, fotografada entre 2013 e 2020 pela fotógrafa Valeria Sacchetti em Journey to the Lowlands. Por fim, o também italiano Tommaso Vitiello compartilha suas percepções sobre paisagens subjetivas formadas por objetos guardados em sótãos e porões, tema do projeto Archèo.

As videoexposições do FestFoto podem ser acessadas no site do festival.

Thiago Guimarães Azevedo – Onde os Sonhos Se Escondem?

Foto: Thiago Guimarães Azevedo

Como se deu a sua imersão para realizar a série Onde os Sonhos Se Escondem?

Thiago Guimarães Azevedo: Essa forma de perceber essa natureza dentro dessa temática surge a partir de uma oficina da qual participei com o fotógrafo Luiz Braga na Ilha do Marajó, chamada “Vivência Marajó”. Nela comecei a observar esses cenários marcados pela simbiose entre seres humanos e natureza. Além da perspectiva visual, há aquilo que é invisível aos olhos, que está nas histórias que as pessoas contam sobre essa interação. Posso afirmar que o ponto de partida para refletir essa perspectiva estética está na fotografia Casa de Farinha, que foi a imagem surgida a partir desse evento.

A região amazônica é pautada por essa relação entre homens, mulheres e crianças com esse universo, seja por meio das suas residências, de suas histórias ou do seu cotidiano. A partir dessa experiência, comecei a estender esse olhar para outros cenários, nessa paisagem híbrida entre os objetos que representam rastros da humanidade e a natureza em si, que de certa forma acolhe esses vestígios.

Essa leitura dialoga com o pensamento do poeta e escritor paraense João de Jesus Paes Loureiro, que aponta uma dicotomia nessa relação amazônica: uma está no campo do pragmático, do dia a dia, da sobrevivência (imediato); e outra no mundo mítico, do estado em suspenso do tempo, que abriga as histórias sobre as entidades da natureza, como oiaras, orijás e encantados (mediato).

O ensaio surge nessa reflexão sobre esse mundo em suspenso que está no universo mediato amazônico, em histórias que envolvem natureza, vida e morte. A forma como essa floresta se impõe ao ser humano e que, de certa forma, esse mundo mediato coloca o humano como alguém que precisa reverenciar esse cenário, mesmo diante das mudanças que a modernidade impõe.

Outro ponto a ser considerado para o surgimento desse ensaio é minha relação como poeta e letrista. Durante o doutorado, fiz uma bela amizade e parceria com o músico e compositor José Maria Bezerra, e juntos criamos algumas canções que possuem esse universo amazônico como temática, entre elas, uma canção que inspirou os nomes e as visualidades desse ensaio, O Suspiro da Cobra Grande (que pode ser assistida aqui). Esse ensaio representa a busca desse mundo que habita nos sonhos, misterioso e ao mesmo tempo fantástico.

Você segue em contato com essas regiões?

Thiago Guimarães Azevedo: O lugar que compõe a maior parte da minha produção está numa Amazônia situada num mundo hibrido entre o rio e o mar, conhecida como região do salgado paraense. O município de Curuçá (PA) faz parte do meu mundo afetivo, pois a família da minha esposa, Rosinda da Silva Miranda, é da região. Desde 2005 passei a frequentar esse local, inicialmente não como fotógrafo, mas fui mergulhando cada vez mais naquele universo, das festas, das paisagens, da arquitetura e da relação com as pessoas – principalmente na Ilha de Fora, que fica próximo ao município. A paisagem da ilha é marcada por trilhas que circundam manguezais e rios, tendo como moradores pescadores, agricultores, catadores de caranguejos e outros habitantes. Pessoas que carregam histórias de ancestralidade, do trabalho como ponto fundamental da vida, mas também dessa troca entre o humano e a natureza.

Como fotógrafo, passei a atuar de forma mais extensiva a partir de 2017, após ganhar de presente do meu pai uma câmera GE à pilha. Com ela pude experimentar as primeiras imagens. A partir do curso com Miguel Chicaoka, pude compreender alguns aspectos da configuração básica do aparelho e, a partir disso, aliei o que tinha adquirido durante minha graduação em design com as conversas com amigos fotógrafos. Nesse ponto, a partir do que já vivenciava em Curuçá, busquei transpor esse visível e enxergar esse universo invisível que habita esses lugares.

Esse lugar continua sendo o meu lugar de maior produção, convívio e sonhos. Atualmente estou desenvolvendo um projeto que foi aprovado pela Lei Aldir Blanc chamado Nervo Exposto, que visa dialogar de forma visual com a comunidade quilombola de Algodoal, localizada na Ilha de Fora.

No texto sobre o trabalho, você fala das relações entre o visual e o imaginado do universo amazônico. De que forma você explorou isso nas imagens que compõem a série?

Thiago Guimarães Azevedo: A subversão está na perspectiva do design que existe em mim. Eu criei um filtro que chamei de Mundiado, um tipo de linguagem que os habitantes da região amazônica utilizam para definir esse estado de encantamento e deslumbre. Esse filtro busca criar uma perspectiva entre a imagem e a percepção sobre esse estado da imaginação. Ou seja, a intenção foi de tornar visível, aquilo que nas histórias e narrativas desses habitantes está no mundo invisível. Pude perceber que esse filtro tinha um efeito onírico diante dessa natureza que fotografava e a partir disso, comecei a fotografar essa paisagem a partir dessa perspectiva estética.

Qual foi a principal descoberta da imersão?

Thiago Guimarães Azevedo: Acredito que a principal descoberta está nessa possibilidade de encontrar nas narrativas das pessoas que fazem parte desse cenário, que possui esse hibridismo entre o mundo da sobrevivência, do trabalho e da vida cotidiana com o mundo de um tempo suspenso, das histórias sobre os seres da florestas, rios, igarapés e manguezais, a possibilidade de desenvolver uma visualidade a partir disso tudo, sem criar um cenário exótico ou piegas. Ao mesmo tempo, não ser um trabalho documental nos moldes antropológicos e jornalístico, mas que alia, de certa forma, essa literatura oral, por meio da histórias contadas por seus habitantes, escrita por meio da música e poesia, o cenário ao qual está sua paisagem, todos esses elementos dialogando com a fotografia.

Valeria Sacchetti – Journey to the Lowlands

Foto: Valeria Sacchetti

Como teve início o projeto Journey to the Lowlands ?

Valeria Sacchetti: Comecei em 2013. A princípio, minha ideia era fotografar grupos familiares, principalmente pessoas que foram atingidas pelo terremoto de maio de 2012 e tiveram que reconstruir suas vidas do zero, sem teto e sem trabalho. Depois, ao longo dos anos, ampliei meu olhar para toda a planície, uma área específica localizada abaixo do nível do mar, atravessada por rios que transbordam no inverno com verões abafados e muito úmidos.

Nos conta sobra a experiência de desenvolver um projeto tão longo.

Valeria Sacchetti: O trabalho ganhou vida própria. Quando comecei, não sabia como e quando iria terminá-lo. Concluí em 2020, então durou sete anos ao todo. Nesse longo período, minha vida também mudou, como a dos habitantes da região, e mudanças também podem ser vistas no trabalho, no sentido de que, se você se dedica a um projeto por tanto tempo, o vínculo que você estabelece com as pessoas sempre se torna mais profundo e mais íntimo, um resultado que eu queria alcançar.

As fotografias da série documentam uma região em particular, com suas circunstâncias sociais, ao mesmo tempo em que apresentam um aspecto bastante onírico. Como você reflete sobre essa abordagem?

Valeria Sacchetti: Esse lugar sempre me inspirou, com atmosferas de filmes de faroeste, céus infinitos, quilômetros de planície e um campo que invade tudo – aqui só existem pequenas localidades, por isso, é a paisagem que faz a diferença. As pessoas vivem dentro desse microcosmo e se tornam parte dele. Falando sobre essas terras das quais é natural, um famoso cantor italiano, Francesco Guccini, escreveu: “entre a Via Emilia e os campos do oeste, interior, velhos galinheiros autogeridos e rostos mais ou menos convencidos”. Imaginando percorrer esse território de trem, deixo-me levar pelas estações e pelo espírito dos habitantes, gente generosa e humilde. Por meio de suas histórias, construí uma narrativa em que o fio condutor é a viagem às planícies das quais toma o nome emprestado.

Na série, você mescla retratos e paisagens. Como é para você lidar com esses dois tipos de registro?

Valeria Sacchetti: Eu estava interessada em construir uma história que mostrasse a vida dessa comunidade em vários níveis. Para isso, precisava de espaços, internos e externos, dialgando entre si, em uma continuidade fluida na qual o olho associa retratos a paisagens e vice-versa, pois são os lugares que fazem as pessoas e as transformam em algo singular.

Você tem uma longa trajetória ligada à fotografia documental, incluindo coberturas para veículos de imprensa. Como Journey to the Lowlands dialoga com essa parte da sua carreira como fotógrafa?

Valeria Sacchetti: Nos meus trabalhos anteriores, abordei culturas e lugares muito diferentes, e isso me permitiu uma abertura como pessoa e fotógrafa. Assim que voltei aos meus locais de origem, procurei aproveitar essas experiências – nada mais difícil do que fotografar as suas raízes, principalmente se você mora em uma área que não tem nada de extraordinário. A beleza precisa ser buscada por aqui, e foi necessário fazê-lo para dar a conhecer um mundo feito de pequenas histórias e grandes visões.

Tommaso Vitiello – Archèo

Foto: Tommaso Vitiello

Como surgiu o projeto?

Tommaso Vitiello: Tudo começou com a ideia de isolamento. Com o tempo, minha atenção dedicada a lugares isolados, abandonados e esquecidos foi direcionada para objetos que ia encontrando. Me inspirei na fotografia arqueológica científica, ou seja, uma fotografia que visa simplesmente catalogar e documentar objetos encontrados em escavações. Então me imaginei mergulhando em um mundo antigo, um mundo não mais habitado, mas no qual os traços de uma vida doméstica milenar ainda viviam fortes – uma vida feita de afetos, amores, histórias e sonhos. A partir daí comecei a tratar minha pesquisa como uma pesquisa arqueológica, e os objetos que encontrei, como artefatos cuja memória de quem os viveu continua forte.

O que lugares como sótãos e porões, que compõem os cenários da série, têm em comum?

Tommaso Vitiello: Porões, sótãos, armazéns e garagens são lugares onde as pessoas – cada um de nós – mais cedo ou mais tarde na vida decidem guardar seus pertences. Memórias, objetos que tínhamos na adolescência, sapatos que já não usamos e dos quais não queremos nos desfazer, aquele prato partido que nos lembra almoços, ou aquela poltrona em que nos contavam histórias, mas que não tem mais espaço na nossa vida. Aqui, todos esses lugares são lugares de cuidado, de atenção, onde pessoas, gerações, decidiram guardar o que era importante para elas. Lugares onde o ato de preservar se torna fundamental e necessário. Achei incrível passar horas nesses espaços, entre a poeira e a luz, simplesmente observando o que as pessoas guardaram e o cuidado que dedicaram à preservação.

O que você destaca dessa abordagem?

Tommaso Vitiello: Acredito que a principal descoberta que fiz na minha pesquisa fotográfica é que cada um de nós é capaz de amar algo do qual guarda uma memória positiva – uma possibilidade de viajar por emoções e memórias, graças a um objeto ou lugar que nos interessa. Tenho me mudando bastante de casa com a minha família, fechando e abrindo caixas, e mesmo aquelas coisas que ficam guardadas no fundo da gaveta sempre foram muito importantes para mim. Essa capacidade de dar importância ao que não interessa a ninguém reflete muito a minha maneira de ver o mundo.

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