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“Dias de Se Fazer Silêncio”: Camila Maccari narra dinâmicas familiares e olhar infantil diante da finitude

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“Dias de Se Fazer Silêncio”: Camila Maccari narra dinâmicas familiares e olhar infantil diante da finitude Camila Maccari. Foto: Carolina Ferronatto

Primeiro livro da escritora Camila Maccari, Dias de Se Fazer Silêncio recebeu em fevereiro o Prêmio Açorianos de Literatura na categoria Narrativa Longa. Lançada em 2020 pela editora Bestiário/Class, a obra conta a história de uma família que lida com o adoecimento terminal de Rui, caçula de apenas 10 anos.

Após um longo período de consultas médicas e internações recorrentes, o menino retorna de forma definitiva para casa, localizada em uma cidade do interior. De volta ao lar, retoma o convívio com a irmã Maria – protagonista da trama –, os pais, os tios e o primo Germano.

“Passaram a manhã deixando o cômodo o mais livre possível de qualquer coisa que pudesse ser nociva à saúde precária do irmão. Embora Maria soubesse que isso não fazia mais diferença e tinha certeza de que a mãe também sabia que isso não fazia mais diferença, não era algo que ousasse falar”, lemos no começo da narrativa, sempre muito próxima de como Maria, um ano mais velha que Rui, observa as dinâmicas familiares.

O ambiente doméstico – formado por duas casas e seus arredores – e as interações nesse espaço são descritos por meio de elementos como os cheiros percebidos por Maria, que se transformam à medida que ela sente e compreende o contexto inescapável da saúde do irmão:

“O cheiro que unia todos os outros já não existia mais e era como se eles se desintegrassem – agora cada coisa tinha seu cheiro específico e esse cheiro deixava de ser parte de algo maior, algo que parece casa, lar, conforto, o cheiro daquilo que se conhece e em que se confia, o cheiro que mantém as coisas em seu devido lugar. Maria acostumou-se com a falta de cheiro da mãe e entendeu, também, que as coisas já não estavam no seu devido lugar”.

Nascida em Sarandi, graduada em jornalismo pela UFRGS, Maccari conta que tinha receio de construir uma protagonista inverossímil ao descrever as elaborações de Maria. “Honestamente, eu não tinha o caminho, foi no sentimento mesmo. O cenário em que Maria estava era intenso, a experiência era intensa, e ainda assim ela era uma criança tendo que fazer essas descobertas, sendo ingênua, inventando o seu caminho, fazendo que ele fosse suportável”, conta a autora de 29 anos, que escreveu Dias de Se Fazer Silêncio em 2017, como parte da dissertação de mestrado em Escrita Criativa da PUCRS.

O escritor Luiz Antonio de Assis Brasil é enfático no elogio à obra. “Digo com a segurança de quem muito leu e muito ensinou: Dias de Se Fazer Silêncio ficará como um marco na atual literatura brasileira, por razão de sua força dramática e por sua intensa e inesquecível literatura”, afirma o professor, cuja oficina literária deu origem aos cursos de Escrita Criativa da PUCRS nos níveis de graduação, mestrado e doutorado.

A força e a intensidade apontadas por Assis Brasil moldam uma narrativa que aborda não só distintos processos de luto, como também os papéis de cuidado desempenhados sobretudo pelas mulheres. “No fim do dia, e no fim da vida, é sobre quanta gente você cuidou, sobre qual rede de afeto você construiu”, reflete Maccari na entrevista a seguir, em que a autora também comenta, entre outros assuntos, o tratamento que o livro dedica ao luto antecipatório, a ambientação da trama, o ritmo da escrita e os desafios de centrar a obra a partir da perspectiva de uma criança.

Nos conta um pouco sobre a tua trajetória e sobre a produção do livro no mestrado de Escrita Criativa da PUCRS. 

O livro foi parte da minha dissertação, junto com um ensaio sobre o processo, que está disponível na biblioteca da PUCRS. Sempre escrevi, desde criancinha, aquela história que muita gente conhece, mas tive um desses momentos de “decidir ser escritora” quando estava na faculdade. Lembro que fazia estágio numa agência de jornalismo e entrar em contato com esse desejo meio que me fez colapsar. Até então eu trabalhava muito direitinho, aí parei de trabalhar direitinho e meus chefes me chamaram para um papo. Tinha 20 anos. Esse livro eu escrevi com 25, hoje estou com quase trinta.

Por mais que o período da escrita tenha sido curto, acho que o processo mesmo durou todo esse tempo. Custei a ter coragem de publicar. Fazia quase dois anos que tinha terminado o mestrado sem mexer no livro, e o Assis Brasil, muito generoso, me chamou para conversar e dizer: publica, esse merece. E disse também que eu não precisava acreditar em mim mesma nem nada, mas era para acreditar nesse trabalho. No fim um monte de coisa mais aconteceu – incluindo uma filha e uma pandemia – e só fui publicar mesmo dois anos depois.

Acho que a essa altura o meu desejo de escrita já esteja bem assentado no peito, não a origem e nem a justificativa, mas o desejo sim. A essa altura também entendo que a minha busca com a literatura vai ter que conseguir existir com aquela energia ínfima de fim do dia, sem romance nenhum, tirar tudo e ver o que sobra depois do dia inteiro de trabalho, das contas, da vida de todos os dias.

O mestrado na PUCRS me pareceu o caminho certo quando terminei a faculdade porque eu sabia que precisaria de algo que me obrigasse a escrever, no sentido de entender se o que eu queria era algo possível. Funciono muito bem sob obrigação, sou ótima fazendo o que tem que ser feito. Aí fui lá e fiz e resolveu, embora agora esteja por conta. 

A narrativa está centrada na perspectiva de Maria. Como foi o processo de elaborar a complexidade do olhar de uma criança?

Foi difícil, e eu tinha muito medo de cair naqueles narradores que são ou inverossímeis ou insuportáveis porque não convencem, parecem mais exercício de escrita que qualquer outra coisa. Honestamente, eu não tinha o caminho, foi no sentimento mesmo. O cenário em que Maria estava era intenso, a experiência era intensa, e ainda assim ela era uma criança tendo que fazer essas descobertas, sendo ingênua, inventando o seu caminho, fazendo que ele fosse suportável.

Por exemplo, ela não sabe que Deus não existe porque tem muita coisa errada lá fora. Ela percebe que Deus vai deixando de existir e fica terrivelmente culpada que Deus a castigue por não acreditar mais nele. Pensei muito em Maria antes de escrever Maria, tentei desaprender e esquecer um bocado de coisas quando me aproximava dela para contar a história. Tentei pensar do lado de lá, de como se sente a criança que está sempre lidando com o caos adulto sem receber o mínimo para passar um pouco mais segura por esse caminho, porque a Maria era muito essa criança, e as marcas e traumas eram consequência disso.

Acho que, no fim, escrever sob a perspectiva de uma criança também pode ter um tanto de lembrar, não sei. E invenção, né? Às vezes a gente inventa e dá certo, às vezes não. É do jogo. 

Você narra o luto antecipatório como um processo caótico, com sentimentos e reflexões muito particulares a cada personagem e repleto de silenciamentos. Poderia nos falar sobre essa abordagem?

Ali cada um é muito solitário no luto e vai progredindo em cada fase da perda (ou da antecipação dela) de sua maneira. Nessa história, o luto antecipatório já é o espaço para afastamentos e silenciamentos, todo mundo parece perdido. Para as crianças fica ainda pior porque, durante muito tempo, elas não tinham noção da iminência da morte do irmão. Isso ficava reservado aos adultos, que viviam seu próprio caos e, invariavelmente, traziam as crianças para dentro dele sem lhes mostrar como nomear o que estava acontecendo.

Maria não sabia nomear muita coisa e todas as suas reflexões e articulações são em busca disso, mas ela já sabia identificar o tanto que perdia no caminho por conta dessa tensão, dessa impressão de uma vida em suspenso. Quando ela entendeu o que realmente estava acontecendo, já vivia tudo de uma maneira muito particular, possível, tentando equilibrar o peso dos dias com o peso de saber, da espera e se agarrando a soluções simplórias a partir de uma esperança infantil.

Para ela, se estavam há muito tempo vivendo o luto, talvez já estivessem prontos para lidar com a perda concreta. E não foi assim que aconteceu, dificilmente é. O luto antecipatório termina na sua antecipação, mas quando ele termina, está apenas começando. O que Maria tinha, no fim, era um pouco mais de bagagem para tentar cortar as distâncias, seja as dela com o pai, com o primo e, principalmente, a distância entre ela e a mãe. 

A reflexão sobre o cuidado também é central. Não só em torno de Rui, que adoece, mas de Maria em relação à mãe, da tia em relação à Maria, da parteira em relação à família e à comunidade… Gostaria que você comentasse esse elemento e o modo como esse cuidado se dá pelas – e, muitas vezes, entre as – personagens femininas. A propósito, um dos títulos dentro do livro é “Mulheres sempre recebem, mas receber também é se doar”.

Quando a mãe faltava para a Maria, a tia estava presente. Quando a mãe faltava a si mesma, a tia também estava lá. Quando a tia precisava de alguém que estivesse por ela, a parteira – com sua aura quase mística e milagrosa dentro dessa comunidade –, aparecia para uma visita que restaurava o ânimo.

O trabalho doméstico rural vai muito além do cuidado com a casa – tem a horta, a plantação, o leite das vacas, o dia de carnear… e tem esse quê de vizinhança. Apesar de ambientes onde “as coisas de homem e coisas de mulheres” costumam ser bem definidas, as “coisas de homens” não se sustentam sem as mulheres.

Minha mãe, por exemplo, é professora, meu pai agricultor. Os dois sempre trabalharam muito. Mas em época de colheita, tinha noites que meu pai não vinha dormir em casa e tinha noites em que ele vinha e trazia outros agricultores, num circuito de colher em cada terra de uma vez. A minha mãe terminava o dia de trabalho dela e começava o dia de trabalho da casa, cozinhando para várias pessoas.

No dia seguinte, no intervalo do almoço do trabalho, isso se repetia, mesmo com o seu próprio trabalho diário, ela dava jeito e sempre cumpria a obrigação de deixar o almoço de toda aquela tropa pronta. A vida no campo não acontece sem mulheres, e eu tenho muita vontade de me debruçar com mais atenção em cima disso, quem sabe um dia.

Acho que a vida no campo como era antes também já é mais lembrança que qualquer outra coisa, não se constrói presente no saudosismo. Mas esse elemento do cuidado pelas mulheres mostra que, no fim do dia, e no fim da vida, é sobre quanta gente você cuidou, sobre qual rede de afeto você construiu. Tem um peso, é claro, sempre tem um peso, mas quem muito dá, algo recebe, e vice-versa.

Geração após geração, existem mulheres que aceitam seu papel de cuidar e fazer e servir, assim como foi o de sua mãe e sua avó e tantas outras antes. E isso não diz respeito apenas à maternidade porque nem sempre as que não foram mães quebraram esse ciclo – veja a parteira, por exemplo, cuja função pode estar atrelada à maternidade, mas do outro lado. Sempre tinha muito trabalho a ser feito e as mulheres sempre estavam ali. 

Você mescla a narrativa em terceira pessoa com títulos que revelam uma voz bastante aforística. Como se deu essa construção?

Sim! Foi meio que uma brincadeira, sabe? Dar uma esticadinha na corda com a possibilidade de texto mesmo. O narrador em terceira pessoa é tão grudado em Maria que às vezes, dependendo do fluxo, você pode dispersar e perder a linha de será que é primeira ou terceira pessoa que está falando ali. Aí esses títulos vieram desse encontro, como uma estrada de duas pistas que vira uma pista só – e, vá lá, um acostamento. 

De que forma você pensou a ambientação na trama no espaço doméstico?

Voltando para casa, de certa forma. Essa história inteira foi construída a partir da casa geminada, inspirada em uma casa de vizinhos dos meus avós, no interior do RS. Criança, eu sempre ia com o meu pai para a colônia, e íamos muito até essa propriedade. Eu ficava por ali brincando, meu pai ficava trabalhando, a gente ficava ao redor ajudando, atrapalhando, enfim. O ponto é que eu, criança, nunca tinha entrado naquela casa. Só imaginava como ela seria por dentro, tinha uma espécie de fixação, não sei o que eu projetava. E na minha memória ela era uma casa imensa.

Logo antes de começar a escrever o livro, fui até o interior passar uns dias com meus pais e pedi que ele me levasse até essa casa. Ninguém mais mora nela – em nenhuma das partes – e já tem bastante coisa destruída, mas fiquei muito chocada com o tamanho da memória que eu tinha feito daquele lugar. Hoje, para mim, é uma casa comum, geminada, sem grandes atributos. A casa não mudou, evidentemente, o que mudou foi meu olhar sobre ela, meu olhar sobre a vida, a ampliação do espaço afetivo onde ela sempre esteve, a dimensão do espaço e o lugar a que essa casa pertencia antes de eu tirá-la de lá, que é a infância.

Essa surpresa guiou a ambientação no espaço doméstico: recuperei todas as cenas e lugares que eu achava incríveis quando era pequena e mantive nesse lugar incrível. Então foi uma construção de todas as minhas impressões – mesmo as coisas inventadas, foram inventadas a partir de alguma impressão muito forte que veio da minha infância, esse lugar onde a gente estreia a vida sem memória: as árvores, a jabuticabeira, a casa limpa demais, o chão sendo lustrado, o cheiro de comida, limpeza e leite de vaca, as estradas e as cercas e mato, as mulheres na cozinha ou a ausência das mulheres da cozinha como algo completamente fora da curva, a liberdade das crianças indo e vindo. Tudo o que eu inventei, inventei a partir de uma idealização e quis que isso cumprisse um papel também com esse chão de onde vim: eu saí, mas ainda está em mim e eu levo junto. 

[Continua...]

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