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A trajetória afrocentrada de Nina Fola

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A trajetória afrocentrada de Nina Fola Nina Fola em show da AfroEntes em 2018. Foto: Ramon Moser/Divulgação Som no Salão

A primeira noite de shows do projeto Unimúsica 2020 tem entre suas atrações uma artista cuja trajetória – familiar, musical, política, religiosa e acadêmica – está intimamente ligada às matrizes culturais africanas. Percussionista, cantora e doutoranda em sociologia, Nina Fola apresenta-se no festival online que a UFRGS promove entre os dias 14 a 18 de setembro, reunindo 25 mulheres instrumentistas.

Ao receber o convite para fazer um show solo, Nina se espantou: “Nossa, não tenho trabalho autoral pronto”, recorda ter pensado a integrante do grupo AfroEntes, que tem 47 anos e vive no bairro Partenon, em Porto Alegre. Passado o susto inicial, a cantora revisitou seu repertório e reuniu, além de músicas recentes, composições como O Herói Africano – escrita por ela há quase duas décadas, inspirada no livro O Herói com Rosto Africano, do psicoterapeuta afro-americano Clyde W. Ford.

A participação de Nina no Unimúsica 2020 soma-se a uma série de momentos que marcaram seu percurso artístico nos últimos anos. Em 2018, o grupo AfroEntes participou do projeto Som no Salão, também promovido pela UFRGS.

Em 2019, Nina subiu mais uma vez ao palco do Salão de Atos, desta vez, ao lado da violinista Clarissa Ferreira e do flautista Texo Cabral, no show Pago Revisitado, que explorou diferentes tradições musicais da cultura gaúcha.

A parceria com Clarissa Ferreira foi resultado de outra vivência de Nina no ano passado: a residência artística do Projeto Concha, voltada à criação de música autoral desenvolvida por mulheres – uma iniciativa idealizada pela produtora cultural Alice Castiel Ruas. “Foi uma grande experiência. Nunca tinha feito um projeto como artista de carreira individual. Cresceu muito essa ideia de como pensar um trabalho a partir desse universo feminino e negro”, conta Nina, destacando as trocas com Dessa Ferreira, Gutcha Ramil, Kaya Rodrigues e Nina Nicolaiewsky, que participaram do laboratório.

Quem também esteve com Nina Fola na residência artística foi Jordana Henriques. “A Nina é uma pessoa maravilhosa. Foi muito importante ter essa representatividade dela como cantora, mulher, artista negra. Tivemos várias trocas em relação a espiritualidade e ancestralidade que me trouxeram muitos aprendizados”, lembra a colega.

Formação musical de berço

As participações em festivais e na residência artística do Projeto Concha são mais uma etapa de um longo caminho percorrido por Nina e sua família – uma história que ela conta generosamente a seus interlocutores. Sua avó por parte de pai, Paulina Cunha – filha de um homem branco com uma mulher negra que ele escravizava –, teve condições de estudar e se iniciar na religiosidade de matriz africana.

Ao se casar com Isaac Marçal, um alfaiate negro, Paulina é deserdada pelo pai. Como uma espécie de compensação, recebe dele um terreno na rua Dezessete de Junho – localizada em um dos territórios negros de Porto Alegre, no bairro Menino Deus. Nesse endereço, em 1946, o casal funda a Sociedade Cultural Beneficente Trevo de Ouro, escola de samba que por três vezes seria campeã do Carnaval da capital gaúcha.

“Meu pai [Pedro Cunha] herda isso e obstinadamente carrega essa instituição até o final da vida”, conta Nina. Cunha viria a ser um dos fundadores da Associação de Entidades Carnavalescas de Porto Alegre, atuando também na criação de escolas de samba da cidade.

Nina e suas três irmãs são filhas do casal formado por Pedro e Eunice Cunha, uma costureira que fazia participações como cantora em rádios de Porto Alegre. “Meu pai e minha mãe são meus primeiros professores”, diz Nina, que desde cedo se inspirava na tradição musical dos terreiros, além de cantar nas festas e rodas de samba promovidas pelos pais no quintal de casa.

Viajando para se encontrar – e enfrentar a invisibilidade da cultura negra no RS

Prestes a completar 15 anos, no final da década 1980, Nina pediu uma bateria de aniversário, presente que lhe foi negado pelo pai. “Hoje entendo o que ele pensava: o que uma mulher vai fazer tocando bateria na noite de Porto Alegre?”, relembra. “Esses momentos te fazem tomar uma decisão, e eu decidi ser uma militante social, lutar pela cultura negra.”

Com esse objetivo, já na década de 1990, aos 20 anos, Nina viajou pela primeira vez a Salvador. Quando contava que era do Rio Grande do Sul, causava surpresa por ser uma mulher negra nascida na “terra de Xuxa”, como costumavam dizer os baianos com quem conversava.

Apesar do estranhamento que enfrentava ao revelar de onde vinha, Nina se entregou à cultura local e se impressionou com a profissionalização das manifestações culturais negras em Salvador. “Isso abriu minha cabeça para me pensar como artista e ver que essas heranças existiam em mim”, recorda.

Nina acabou voltando a Porto Alegre para, uma década mais tarde, novamente sair da cidade em busca de formação artística. Aos 30 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde viveria por oito anos e teria dois filhos, Aretha e Malyck. Na capital carioca – além de trabalhar como produtora cultural, artista e professora de música –, ingressou em 2003 no curso de Percussão Popular da Escola de Música Villa-Lobos, criado por Mestre Riko.

“Nina foi uma grande aluna. Sempre sorridente, alegre e aplicada, correndo da escola para o trabalho”, conta o professor, que também fundou uma das primeiras baterias só de mulheres no Rio, a Fina Batucada. “Hoje vejo ela cantando, tocando atabaque, congas… Fizemos muito essas aulas, interpretando ritmos regionais e afro-brasileiros”, completa o mestre.

Nina vê a necessidade que sentiu de sair do Rio Grande do Sul como um efeito do racismo estrutural e da invisibilidade da cultura negra no estado: “Eu mesma não via minha cultura, apesar de ter aprendido a cantar com músicas de Lupicínio”, explica. “Quando se fala que o racismo diminui oportunidades, a minha história é exemplar. Não me impossibilitou, mas exigiu um grande esforço, mesmo com a sorte de ter pai e mãe que acessavam isso [a cultura negra] com muita facilidade.”

Ativismo e atuação acadêmica

Em paralelo à trajetória artística, entre 2012 e 2020 Nina se graduou e se tornou mestre em sociologia pela UFRGS, com uma dissertação que investigou as políticas de gênero adotadas por mulheres líderes de terreiros no Rio Grande do Sul diante de esferas públicas eurocentradas.

Nina também participou da fundação do Grupo de Estudos Atinúké – voltado à articulação de mulheres negras no meio universitário e à produção acadêmica antirracista –, da Africanamente – que é uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) e Ponto de Cultura – e da Biblioteca Pedro Cunha – no espaço da Africanamente, homenageando seu pai, com acervo focado na produção intelectual de autores negros.

Diante dos debates sobre racismo que ocuparam a mídia nas últimas semanas, impulsionados pelo assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, a socióloga e ativista ressalta que “teve que morrer um norte-americano – e os norte-americanos brancos fazerem algum movimento – para a branquitude do Brasil achar que, agora, pode discutir mais o racismo”.

“Temos eventos tão ou mais cruéis e frequentes. A Claudia Silva Ferreira foi arrastada por um camburão da PM do Rio, em 2014, e não criou comoção nacional entre as pessoas brancas”, completa.

Ainda que a barbárie racista não dê trégua, Nina destaca o papel do movimento negro no Brasil nas últimas décadas para ampliar as discussões sobre o tema: “Antes só pessoas engajadíssimas do movimento negro tinham argumentos e a chancela de falar. Hoje isso está mais pulverizado. A gente conseguiu fazer com que pessoas negras comuns elaborem e tenham capacidade de discutir essas questões com seus amigos, colegas de trabalho e suas famílias interraciais”.

Perspectiva afrocentrada – no terreiro, na universidade e nos palcos

Perguntada sobre como articula no dia a dia sua atuação múltipla, Nina responde que não se sente dividida “em caixas” e que tenta “harmonizar” as camadas que compõem sua identidade. “Sou doutoranda em sociologia, estudo o povo de terreiro e sou uma mulher de terreiro”, conta Nina, que é Egbomi da Comunidade Terreira Ilê Asé Iyemonjá Omi Olodô.

“Sou uma mulher negra, nascida em Porto Alegre, com perspectivas totalmente ocidentais de criação. Mas pesquiso tanto que sigo resgatando essas coisas para o meu viver. Tudo junto ao mesmo tempo e misturado”, brinca Nina. “Em alguns momentos falo academicamente, e a música me dá completude. Vou me engendrando nos meus fazeres, numa perspectiva afrocentrada.”

Em meio a tudo que Nina constrói ao mesmo tempo e misturado, a música insiste em lhe acompanhar. “A arte sempre esteve presente na minha vida. Por mais que eu vá estudar, por mais que eu faça, ela volta. Sempre vem um grande convite, como esse do Unimúsica, para eu estar no palco de novo, e é no palco que eu me sinto bem”, define.

Entre as diversas colegas de palco que cita com admiração, Nina destaca o papel de cantoras como Loma Pereira e Marietti Fialho que a precederam em palcos gaúchos majoritariamente brancos. “Tenho que pensar nessas mulheres de forma muito generosa e dizer o quanto elas são importantes para eu ser aceita hoje”, reflete.

Nina reforça o argumento mencionando o olhar que as mulheres e homens da diáspora africana lançam para sua ancestralidade: “Se estou viva hoje é porque meus antepassados de alguma maneira conseguiram preservar isso, para que eu vivesse a minha história. Eles não vieram com malas e fotos de família, é uma condição muito diferente”.

Nina celebra as mulheres negras precursoras, mas também olha ao redor e fala com carinho e orgulho de suas contemporâneas, como a cantora Glau Barros e as colegas do Projeto Concha. “Saí de uma Porto Alegre em que a única cantora que existia era a Adriana Calcanhotto, e ela nem morava mais aqui”, recorda. “Hoje é uma Porto Alegre muito mais dinâmica, onde brotam outras ideias. Fico feliz, tô nessa onda de transformação.”

Programação Unimúsica 2020 – Festival Forrobodó
De 14 a 18 de setembro, às 20h
Confira os canais de transmissão, em breve, no site da Difusão Cultural da UFRGS.

14/9 – Alzira EJosyaraLívia MattosNina Fola e Gabriela Machado
15/9 – Simone SoulLilian NakahodoAna Karina SebastiãoAnge Bazzani e Maria Beraldo
16/9 – Cristina BragaLéa FreireCarol PanesiMariá Portugal e Gabriela Vilanova
17/9 – Lucinha TurnbullNatália CarreraDenise FontouraClarice Assad e Bianca Gismonti
18/9 – Ayelen PaisRenata RosaSimone RasslanMaíra Freitas e Joana Queiroz 

Confira a entrevista com a clarinetista Joana Queiroz, que se apresenta na última noite do Unimúsica 2020.

Para saber mais sobre a edição deste ano do festival, leia a reportagem da jornalista Ana Laura Freitas, uma das curadoras do evento.

Assista à conversa de Nina Fola com a cantora Tatiéli Bueno.

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