O arquipélago de Lery
Como tantos outros artistas, Gabriela Lery teve que mudar seus planos devido à pandemia do coronavírus. As restrições impostas a partir de março impediram que a cantautora porto-alegrense seguisse realizando os shows do EP Coleção, lançado em 2019. Esses mesmos limites, no entanto, deram os contornos para que a potência criativa de Lery adquirisse novas formas.
Primeiro, na série de 15 vídeos Pequenas Canções do Isolamento, exibida no seu canal IGTV, no Instagram. “Entrei num looping de compor todos os dias. Precisava ocupar minha cabeça e não ficar pensando só nas tragédias do mundo. Percebi o interesse das pessoas, o que me motivou a continuar e me deu o desejo de transformar as músicas em algo mais concreto”, conta Lery.
Dessa produção em tempos pandêmicos emergiu Arquipélago, álbum lançado na última sexta que reúne faixas da série e músicas inéditas. “Eu não tinha a menor perspectiva de lançar um disco neste ano. Queria lançar singles para complementar e movimentar o Coleção. O álbum [Arquipélago] veio por causa do isolamento e do FAC Digital RS”, explica Lery, destacando o papel das iniciativas de fomento à produção artística.
O título do trabalho foi uma sugestão de Fu_K The Zeitgeist (nome artístico do produtor Valmor Pedretti Jr.), que assina a produção do disco com Lery e o músico Carlos Ferreira. A imagem de um conjunto de ilhas alude ao processo de concepção e gravação do álbum, todo desenvolvido por meio de um grupo de WhatsApp e nos home studios dos músicos, sem encontros presenciais.
“Em nenhum momento senti que eles estavam distantes. Nos materializamos de outros jeitos, especialmente na música”, conta Lery, que também interpreta a imagem do arquipélago a partir dos espaços que separam – e unem – um conjunto de ilhas: “Era como eu me sentia no início da pandemia. Parecia que tinha vários buracos em mim, várias coisas que eu não conhecia. Comecei a me perceber uma pessoa mais ansiosa, mas também a me bastar muito mais comigo mesma”.
Ilha, substantivo feminino
Quem também integra as ilhas do arquipélago de Lery são o músico Lucas Protti e as também cantautoras Nina Nicolaiewsky, Rita Zart – relembre a entrevista – e Sara Nina, que participam das faixas Pra se Acostumar, Quem Diria, Vaza e Quem te Colocou Aí?, respectivamente. “Penso que é meu dever dar espaço para outras mulheres. Quanto mais eu puder, mais vou trabalhar com elas. E não é porque eu odeie homens ou queira trabalhar exclusivamente com mulheres. É porque quero dar espaço para essas pessoas crescerem. Digo isso enquanto artista, professora, produtora e ser humano”, reflete Lery.
“Também podemos fazer essas escolhas enquanto ouvintes: escutar mais mulheres, a galera daqui, minorias. Tem muita gente muito boa fazendo muita coisa legal. Às vezes deixamos de escutar não porque não seja legal, mas porque não estamos acostumados a valorizar”, defende a cantora. “Acho que é isso o que temos que fazer pelos nossos artistas locais, mulheres, negros, trans e LGBTs – eu, inclusive, enquanto mulher lésbica”, completa.
Nessa busca por um arquipélago mais feminino, Lery destaca a parceria com os coprodutores Fu_k The Zeitgeist e Carlos Ferreira, com quem ela trabalha desde o EP Coleção. “Eles sabem que estão num lugar de privilégio. Justamente por estarem nesse lugar, podem me ajudar a subir uns degraus. Eles me incentivaram muito a gravar os baixos, são os homens que eu queria que todos os homens fossem”, elogia a cantautora.
Música como ofício e atividade educadora
Aos 25 anos, a hoje baixista Gabriela Lery conta que o primeiro instrumento que lhe despertou interesse – pelo menos segundo o folclore familiar – não era nada roqueiro. Aos 3 anos, a cantora ficou fascinada ao ver um cavaquinho na vitrine de uma loja. No entendimento da futura musicista, conforme relatos maternos, tratava-se de um violão pequeno, proporcional à sua estatura diminuta.
Lery começou a estudar música aos 6 anos e, na adolescência, já integrava bandas que tocavam profissionalmente. Em 2013, ingressou na graduação em Música da UFRGS, tendo a voz como instrumento ao longo da formação em música popular. Na universidade, somou o estudo de cânones da música brasileira ao repertório roqueiro que tinha até então.
A partir de 2016, ano em que concluiu a graduação, Lery começou a trilhar seu percurso como cantautora. Em paralelo, uniu-se em 2019 à banda instrumental As Aventuras, formada por Aline Araújo (teclado), Carol Souza (bateria), Gabi Menoncin (guitarra) e Nathalia Schmitz (guitarra). Lery entrou no lugar da baixista Rê Martins e participou da gravação do EP Mulher-Panthera, lançado no projeto Som no Salão, promovido pela UFRGS.
Além de cantautora e de instrumentista d’As Aventuras, Lery também é professora de música. Em suas diferentes atuações, defende “o quanto a música é um trabalho, um ofício, algo que se aperfeiçoa, como em qualquer outra área”. Não à toa, duas iniciativas vinculadas ao lançamento de Arquipélago contemplam essa perspectiva ligada à educação.
A primeira delas é a disponibilidade para download de faixas vocais e instrumentais utilizadas para a gravação do álbum. “Pode ser um exercício de pura curiosidade, mas também é muito didático. Como educadora musical, se uma pessoa usar esse material para aprender um pouco sobre mixagem ou arranjo, já fico feliz. Enquanto consumidora de música e aprendiz de produção, gostaria que mais pessoas fizessem isso”, explica.
A segunda possibilidade de se aproximar dos bastidores de Arquipélago é um podcast com comentários sobre as faixas. Ao longo dos episódios, a artista expõe seu processo criativo, suas escolhas e aspectos técnicos das gravações em formato home studio.
Limites desenham ilhas de afeto
As circunstâncias sui generis da pandemia e as trocas com os coprodutores de Arquipélago levaram Lery a refletir sobre os limites que moldam o fazer artístico. “Fui aprendendo a ser mais criativa com o que tenho. Sou cheia de limitações e usei elas a meu favor. Isso é o melhor que eu posso fazer nesse momento, com o que tenho, e está bom”, afirma a cantautora.
Lery conta que o envolvimento com as músicas do seu “disco pandêmico” foi fundamental para navegar por 2020. Agora ela espera que essas ilhas sonoras, formadas em meio às ondas agitadas deste ano, formem novos arquipélagos: “Compartilhar essas músicas passa pela esperança de que elas sejam uma surpresa boa, um carinho meu em quem escuta, apesar de não ser 100% carinhoso e ter momentos agressivos. Mas é uma agressividade feita com afeto e cuidado”.