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“A Noiva da Lagoa” mescla pesquisa histórica e depoimentos atuais sobre violência contra a mulher

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“A Noiva da Lagoa” mescla pesquisa histórica e depoimentos atuais sobre violência contra a mulher Foto: Eliza Pierim

A morte de Maria Luiza Häussler e a lenda que se popularizou a partir do caso, ocorrido em 1940, na Lagoa dos Barros (RS), inspiram o espetáculo A Noiva da Lagoa, que estreia no dia 16 de junho, às 19h30, na Sala Qorpo Santo, da UFRGS – onde segue em cartaz nos dias 22, 23, 29 e 30 de junho.

O diretor Xico de Assis conta que o espetáculo surgiu em aulas do Departamento de Arte Dramática da UFRGS, no qual ele é professor, a partir de estudos da peça O Vestido de Noiva (1943), de Nelson Rodrigues. Durante trocas com alunas em sala de aula, a lenda da Noiva da Lagoa dos Barros – uma mulher vestida de noiva vista por moradores e motoristas que circulam pela região – e o caso que a originou vieram à tona e se tornaram o eixo central da montagem, que tem dramaturgia e atuação de Laura Retamar, Luiza Escandiel e Verônica Becker, com supervisão do jornalista Rafael Guimaraens, autor do livro A Dama da Lagoa (2013).

Segundo as investigações da época e a pesquisa de Guimaraes, Maria Luiza Häussler, 16 anos, teria se envolvido em uma discussão com o namorado, Heinz Werner Schmeling, 19 anos, em uma festa da Sociedade Germânia, em Porto Alegre, na noite de 17 para 18 de agosto de 1940. O jovem teria tido uma crise de ciúmes durante o baile. Heinz e Maria Luiza deixaram o local. No dia 18, Heinz foi encontrado ferido por um tiro. No dia 20 de agosto, o corpo da adolescente foi encontrado na Lagoa dos Barros com um tiro no peito e amarrado a tijolos.

Segundo a versão do rapaz, Maria Luiza teria atirado nele e se suicidado. Atônito com a possível suspeita de assassinato que poderia surgir, ele teria tentado ocultar o cadáver. A versão, entretanto, não lhe livrou da condenação por homicídio em 1942 – Heinz ficou preso por seis anos.

Em 2019, o Instituto Geral de Perícias do RS (IGP-RS) encontrou laudos produzidos durante a investigação, que ainda não tinham se tornado públicos, detalhando os procedimentos utilizados à época para elucidar o caso. A perícia não conseguiu descartar a possibilidade de suicídio de Maria Luiza, mas a partir de uma série de indícios – como a origem dos tijolos encontrados com o corpo – a polícia demonstrava acreditar que Heinz premeditara a morte de Maria Luiza e fracassara na tentativa de se suicidar.

Foto: Eliza Pierim

Além de mergulhar nos documentos sobre o caso, a equipe do espetáculo entrevistou mulheres vítimas de violência doméstica acolhidas pelo Projeto Borboleta, do Foro Central de Porto Alegre. “Foi aí que a peça adquiriu outro significado e importância para mim. Pude ver depoimentos de mulheres reais, de hoje, que conviviam diariamente com o fantasma do medo, mas que, acima de tudo, tinham uma enorme sede de viver, de mudar os rumos das próprias histórias”, conta a atriz e dramaturga Laura Retamar.

“Comecei a defender a ideia de que o espetáculo, além de mostrar os mecanismos de um relacionamento abusivo, deveria mostrar também a possibilidade de mudança, sem tratar o tema como algo inevitável, mas não de forma ingênua, como se fosse simples sair de um relacionamento desse tipo”, completa.

O diretor da montagem destaca o aprendizado junto ao Projeto Borboleta sobre os modos de violência – afetiva, moral, patrimonial, entre outros – sofridos pelas mulheres e os diferentes perfis de abusadores, que com frequência reservam comportamentos violentos à intimidade de suas relações.

“Mesmo após 80 anos, os relatos das mulheres do Projeto Borboleta são muito semelhantes à história da Maria Luiza, documentada em laudos, cartas e diários. O espetáculo conta a história dela, mas também está muito centrado na percepção de como é uma relação tóxica”, explica o diretor.

Ao longo da concepção do espetáculo, mulheres acolhidas pelo Projeto Borboleta orientaram cenas e tiveram relatos incorporados à peça – no próprio texto e em vídeos narrados em primeira pessoa –, contribuindo para a representação de dinâmicas abusivas que trágica e frequentemente levam ao feminicídio.

Foto: Eliza Pierim

À pesquisa documental e etnográfica somam-se os componentes fantásticos da Noiva da Lagoa dos Barros e outras lendas. “Diversos mitos de sereias e criaturas sobrenaturais femininas relacionadas à água estão ligados a histórias de vingança por violências praticadas por homens”, destaca Laura. Ela e as outras atrizes também realizaram ensaiaram com máscaras neutras, dando ênfase à gestualidade da representação dos fantasmas da peça.

Assinada pela artista visual Lilian Maus, a cenografia inspira-se na Lagoa dos Barros. “Do cenário emana uma atmosfera sublime de contemplação, envolvendo a plateia em um suspense, por vezes terrível, onde os ventos, as águas, as pedras e as árvores-cata-vento, com suas barbas-de-pau e cipós, ajudam a contar as fascinantes histórias de fantasma da região”, descreve a artista, que já desenvolveu diversos trabalhos relacionados às paisagens da região de Osório (RS).

A trilha original composta por André Brasil utiliza experimentações sonoras e efeitos eletrônicos, e a iluminação de Carmem Salazar explora por meio da luz as múltiplas camadas do espetáculo.

“Agora que estamos nos aproximando da estreia, sinto que faço a peça principalmente para as mulheres do Projeto Borboleta. Espero que o espetáculo possa se comunicar com elas e não deixar um gosto amargo na boca”, reflete Laura Retamar.

“A Maria Luiza do século passado morreu, muitas outras mulheres deste século também seguem morrendo, mas como sociedade não podemos ficar de braços cruzados. As noivas fantasmas não nos convidam a aceitar a morte como algo irremediável, mas como uma forma de, com suas mortes, fortalecer a nossa urgência por transformação, para que cada vez menos mulheres tenham suas vidas interrompidas”, completa a dramaturga.

Ações educativas e preventivas

Foto: Carmem Salazar

Financiada pelo Fundo de Apoio à Cultura (FAC) do Pró-Cultura RS, mecanismo de fomento do governo estadual, o projeto de A Noiva da Lagoa inclui a apresentação da montagem em escolas da rede pública de Porto Alegre, em parceria com o Programa RS Seguro.

Os estudantes participarão de conversas com o elenco e de uma oficina teatral sobre prevenção de violência doméstica e feminicídio, a partir da técnica de teatro fórum, desenvolvida por Augusto Boal, que conecta a atuação cênica a temáticas sociais. Em julho, serão realizadas outras cinco apresentações gratuitas nas cidades de Alvorada, Canoas, Guaíba, Osório e Santo Antônio da Patrulha.

As iniciativas se encerram com o seminário “Feminicídio e outras violências: conhecer para se proteger”, que será realizado na UFRGS, no segundo semestre deste ano, promovido pela equipe da peça em parceria com o Projeto Borboleta, o Departamento de Educação e Desenvolvimento Social e o Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS. Serão abordadas temáticas socioculturais e de caráter jurídico relacionados à violência contra a mulher, tais como a operacionalização da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio, bem como experiências educativas, artísticas e preventivas, desenvolvidas por coletivos de artistas mulheres.

“A Noiva da Lagoa”
Quando: 16, 22, 23, 29 e 30 de junho
Horário: 19h30
Onde: Sala Qorpo Santo – Campus Central da UFRGS (avenida Paulo Gama, 110 – Farroupilha – Porto Alegre)
Ingressos: entrada franca (distribuição de ingressos no Sympla e, no local, uma hora antes do espetáculo)
A sessão do dia 23 de junho contará com interpretação em libras.
Mais informações no perfil de Instagram do espetáculo.

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sexta-feira, 16 a 16 de junho de 2023 | 19h30

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