O homem morreu
Faz tempo, ouviu-se o anúncio. Era no tempo do impresso. Foi num prédio não muito longe da bolsa de valores que tudo aconteceu. Num templo do saber acadêmico. Tudo isso numa bela tarde solene:
– O Homem está morto.
Não houve grande alarde. A maioria pensou tratar-se de algum desconhecido. Não deu bola. A frase foi repetida com mais ênfase.
– Que homem? – perguntou, enfim, uma mulher.
– O Homem.
Percebendo a entonação que colocava o “h” em maiúsculas, houve burburinho. A coisa mudava nitidamente de figura. Restava explicar a situação. A mesma mulher considerou relevante pedir esclarecimentos.
– O gênero?
Um homenzinho franzino de macacão azul e tímido exaltou-se:
– A classe? A categoria?
Não recebeu resposta.
Um banqueiro – com certeza era banqueiro – calculou:
– O ser humano?
Um intelectual – era, sim, um intelectual, não havia como errar, via-se isso de longe – brilhou pela circunspecção:
– O conceito.
Ouviu o barulho do ponto de interrogação batendo no chão. O Homem morreu. Viva o homem. Na sequência, todos os erros do Homem, inclusive essa supressão da mulher no designativo conjunto – foram listados. O Homem foi condenado por crime de humanismo doloso.
– Que rápido – disse o intelectual – era uma invenção recente.
– O Homem não é o centro do universo – afirmaria um promotor.
– Nem a medida de todas as coisas – concordaria o juiz.
Essa sintonia não foi notada na hora.
Um homem insignificante resolveria contrariar:
– Só o homem pode anunciar conceitualmente a morte do homem – disse.
– Isso é o que determina o antropoceno – ouviu.
– Os direitos das demais espécies só podem ser garantidos pelo homem.
– O humanismo é um especismo – disseram-lhe.
– Até para se diminuir e assumir sua ínfima dimensão no universo, senhores, é preciso que o homem use um metro qualquer – reagiu.
– Especista.
– O homem é a medida de todas as coisas, inclusiva da sua insignificância – disse, sentindo que sua voz ressoava mais alto.
Se era guerra, ia lutar. Era muito tarde para recuar:
– Os objetos também têm direitos – ouviu.
Ia retrucar quando uma bala perdida o achou.
– Mataram um homem – ouviu-se na esquina.
Um idoso, certamente um sábio, resumiu:
– O Homem é o homem, suas circunstâncias e o artigo que o acompanha.