Juremir Machado da Silva

Capim Santa Fé

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Capim Santa Fé Foto: ICMBio

Sim, eu tenho essa saudade do futuro que me faz sorrir quando me sinto triste. No mais, o que me faz apertar os olhos são lembranças sem razão de ser. Há dias, especialmente de inverno, com sol tímido e suave, que eu me vejo contemplando o doce e melancólico balanço do capim santa fé. Era no fundo do campo, lá onde a pampa encontra a sua alma. Eu era menino e sonhava com dias quentes. Vez ou outra, no começo das tardes, olhava a verdura interminável dos campos e via, numa parte baixa e úmida ao longe, tremular um quase mato de capim santa fé. Eu ouvia o vento, experimentava a sua dureza cortante, tanto quanto a desse capim que cobria as casas e os galpões, e me sentia repentinamente desolado, como se o tempo fosse senhor do medo, tão triste quanto os pássaros.

Jamais saberei o que me faz pensar naquelas tardes, naquele sol, naquele vento, naqueles pássaros, naquelas touceiras de capim ondulando como se fossem pessoas vergadas ao cabo da enxada. Era um quadro aquilo, o quadro que eu nunca saberia pintar, mas era também uma sinfonia, aquela que eu jamais poderia tocar, quem sabe uma sonata de inverno, talvez apenas algumas notas, o som de um violino, a arte que eu ainda não conhecia e da qual já sentida saudade. Lembro-me como se fosse agora, pois estou revendo a cena, de um pássaro de papo amarelo na cumeeira do galpão mais alto, lembro também do meu avô “quinchando” outra casa com aquele capim resistente e térmico. Do alto, ele me dizia sibilando:

– Cuidado, não vai te cortar.

Mal sabia ele que eu já estava cortado por dentro, lacerado, lanhado, cortado pela imensa tristeza que aquela paisagem tão bela e gratuita acendia em mim. O capim santa fé que eu via naqueles baixios onde pastava um cavalo ou um boi amarelava e sua dança, pois para mim era uma dança cheia de nostalgia, ganhava ares de oração. Eu tinha uma estranha vontade de capturar aquelas imagens, de guardá-las no meu fundo mais secreto, de protegê-las da noite que chegava implacável. Até hoje não sei o que essas lembranças representam. Não encontrei quem me explicasse a força selvagem da oscilação daqueles altos tufos de capim santa fé na solidão povoada de pios de pássaros daqueles dias ventosos.

Certa vez, numa manhã ensolarada de Paris, perguntei a um psicanalista muito famoso, que me concedia uma entrevista e falava de coisas que me faziam pensar na beleza crua do capim da campanha curvando-se para resistir à pressão do vento gelado, o que isso podia significar. Ele sorriu, bebeu um gole do seu vinho branco, cumprimentou uma passante, enquanto a cidade rugia em torno, à sombra das flores do mal, e disse:

– Possivelmente que esse foi o lugar que mais amou até hoje.

Fiquei pensando nesse amor por um lugar e por uma imagem que me entristeciam. Hoje, liberto das poucas ilusões que nutri sobre certas glórias vãs, chego a pensar que aquela cena fazia de mim pintor, músico, cantor, desenhista, poeta e até colecionador de perfeições estranhamente perecíveis e eternas. Tem certos dias, quando o inverno se instala e o sol brilha como se sentisse preguiça, que eu penso naquelas tardes, na melancólica oscilação daquelas plantas rústicas, no vento assobiando, naquelas verduras sem fim e chego a ouvir o pio dos mesmos pássaros, como se eu tivesse ficado congelado num quadro pintado por alguém que não vi.

Então eu canto…

“Sei que ainda vou voltar…”

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