Mulher negra
Cena 1 – A bacia de tinta branca
Eu tinha quatro anos e estava no jardim de infância quando percebi, pela primeira vez, a diferença da cor da minha pele em relação às outras crianças. Havia nas coleguinhas e nos coleguinhas brancos um temor de que, caso eu as tocasse, elas também se tornariam negras, como eu. Como se a minha negritude pudesse, de alguma forma, contagiá-las. Naquele espaço, conheci Felipe, um menino pelo qual tive um amor infantil. Felipe era branco e também gostava de mim. No entanto, havia Carla, uma menina branca que era minha “rival”. Felipe também gostava da Carla. Um dia, ele me disse que gostava mais de mim do que da Carla, mas eu era preta. Ele me propôs que eu ficasse branca; só assim ele poderia ser meu namorado. Felipe sugeriu, então, que eu mergulhasse numa grande bacia de tinta branca e lá ficasse por algumas horas, até que minha pele absorvesse a tinta.
Embora meu colega do jardim provavelmente ignorasse a origem do discurso que veiculava na pracinha da escola, no início dos anos 1980, esse mesmo discurso já o constituía e também a mim. Felipe percebia-se como superior em relação a mim, por ser branco, de forma que cabia a mim a conversão que possibilitaria o nosso “namoro”. Ele sabia que só poderia amar uma menina branca. Eu compreendi que, para igualar-me a ele, para merecê-lo, precisava embranquecer-me. Minha primeira referência em relação ao discurso do embranquecimento foi o desejo de eficácia da bacia de tinta branca.
Felipe me ensinou que, para ser amada, eu precisava ser branca.
Cena 2 – O espirro
[Continua...]