Crônica

Bola Pelé

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Bola Pelé

Recordo (bem piá e a vida infinita) quando a gente ia jogar futebol lá na minha zona. Todos os dias, até o sol se mandar. 

Me vejo agora espiando, trepado num flamboaiã lá de casa, se ninguém chegava no campinho que ficava há uns 50 metros de onde morávamos. Uma fome de bola pelas pernas e nada de alguém aparecer. Que solidão. A minha e do nosso estádio vazio sob o sol franzino das duas da tarde daquele julho.

O campinho era um perfeito gramado de areião, com declives, buracos e poças de chuva, que driblávamos ou ficávamos dentro duma. A bola era uma bola Pelé, de plástico, com a assinatura do Rei, a cor era marrom e… furada.  Nesse estado, ela ficava dura, diminuta, pesadinha, quase ovalada e ganhava a qualidade de não mudar o rumo quando lançada pelo alto. Jogávamos todos descalços e ela fazia arder o peito do pé quando batíamos nela com certa força, uma dor íntima. 

Íamos para o nosso estádio em dois jogadores ou, muitas vezes, solitários. Ficávamos lá, sem pressa alguma, batendo bola se lá ela estivesse. Na sua ausência, o mesmo se dava com uma bola invisível ou valia uma lata, uma laranja, um limão, uma tampinha de cerveja, esperando o dono da bola chegar. Em menos de cinco minutos uns 15 neguinhos apareciam, os ali da zona e do nada. Do nada é que tinha uns caras que apareciam só quando tinha jogo. Eram estrangeiros para nós. Vinham, jogavam e sumiam. O doido é que alguns jogavam um bolão. Até hoje penso nesses personagens anônimos/forasteiros. Onde moravam, quais seus nomes e apelidos? Um mistério.

O jogo já vai começar. Par ou ímpar? Dois caras, os melhores, vão escolher os times: “ — Eu quero o Zoca, tu, o Beto, Júlio, o Chumbinho…” “— Eu quero o Tonho, o Beiço, o Taquara…” (puta merda, este cara no meu time, ele é muito ruim, vai pro gol, pensava um de nós) 

Os chinelos de dedo ou algumas pedras e prontas as goleiras. Narrávamos os lances quando pegávamos na bola nos batizando com os nomes dos jogadores da época que mais admirávamos. Eu gostava de ser o Zózimo, zagueiro da seleção e do Botafogo, um jogador liso, altivo. Meu irmão Cézar, era o Cesar, centroavante do Palmeiras. O Júlio, filho do seu Aldo do armazém, era o Ademir da Guia, e era mesmo.

Tarde de Glória

Foi o dia que a referida bola Pelé teve sua estreia. 

Novinha em folha, veio, desde a minha casa, umas duas quadras do nosso “estádio”, debaixo do meu braço. Jogar com uma bola nova, todos sabíamos, iria acontecer poucas vezes em nossas biografias de meninos. Portanto, ao meu entorno, solenes guardiões (uns 8 piás magricelas, devidamente fardados só de calção e pés nus) me escoltaram desde o portão lá de casa até o campinho. Seguindo o cerimonial, desta vez nada de empurrões, sacanagens ou arengas durante o trajeto. A coisa era séria. Ainda ilesa e sob meu braço, seria um pecado grave bater a bola na calçada. Sofreria laivos e máculas imperdoáveis. Inda mais sobre o abrasivo piso de pedra grés das nossas calçadas quase cor-de-rosa. Mesmo já no campinho, ela ficou solitária no meio do campo enquanto rolava o par ou ímpar para a escalação dos atletas.

Sim, ela sucumbiu. Logo aos 30 segundos do clássico. Zoca, nosso ponta direito, recebeu a bola e deu bico de longe ao gol. A bola subiu, subiu, varou nas alturas dos céus e mergulhou nos espinhos do Maricá, a poucos 30 metros do campo. Ferida gravemente, ela foi definhando, deu um último suspiro e prostrou.  Zoca, desolado, foi ao seu encalço. 

O sentimento de tristeza que se fez não foi pelo funesto incidente. Tampouco por sentirmos a dor que a bola sentiu ao ser perfurada, pois todos ali já haviam experimentado os espinhos daquele Maricá na carne das pernas ou nos dedos. 

A lástima que pairava era outra. É que naquela tarde histórica, muito poucos jogadores chegaram a tocar os pés na bola Pelé quando ela ainda estava “viva”. E muito menos eu.

Passei na frente do Marinha no domingo passado. Vários meninos e meninas batiam bola nos gramados sob as árvores. Me aproximei aos passos. Nunca vi tantas bolas de couro. Novíssimas, oficiais, número cinco. Mas teve uma das bolas que mais buliu com a minha alma. Uma bola de couro branca, acetinada e idílica. Não foi que essa escapuliu dos pés dum garoto e foi chegando bem na minha direção? Aguardei ela chegar e no derradeiro instante que eu iria dominá-la com carinho, fazer uma só embaixada e devolvê-la com mansidão, o lépido garoto cortou sua trajetória e a resgatou.

Saindo do Marinha, pensei: e se aquele garoto soubesse que um dos nossos sonhos lá da zona era jogarmos com uma dessas bolas brancas de couro, num jogo noturno, num estádio iluminado e verdadeiro e vê-la, edulcorada, escorrer pelo gramado até o infindável sonho se acabar? 

Tá bem, que bom que essa meninada teve melhor ventura. Mas ela terá alguma recordação pungente daquele domingo no Marinha? 

Escolho a minha, pungente como o espinho do Maricá. Tarde de julho, o sol se mandando, o campinho de areião e 8 garotos correndo atrás de uma Bola Pelé, mesmo furada.


Nelson Coelho de Castro é compositor, cantor e produtor musical brasileiro e está comemorando 70 anos.  

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