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Redução de quadro técnico precariza Dmae para concessão, denunciam municipários

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Redução de quadro técnico precariza Dmae para concessão, denunciam municipários Foto: Leonardo Contursi / CMPA

Prefeitura aprova vagas temporárias após ignorar 7 pedidos para repor servidores. Entre 2013 e 2021, força de trabalho do órgão passou de 2.325 para cerca de 1.100

Sebastião Melo ignorou pelo menos sete pedidos para repor servidores do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) entre 2021 e 2022, segundo funcionários do órgão ouvidos pelo Matinal. Os documentos mostram pedidos protocolados desde o início da gestão e que não obtiveram resposta. Desde 2018, foram pelo menos 15 pedidos para reposição de funcionários.

Nesta quarta-feira, a Câmara Municipal aprovou projeto de lei do Executivo autorizando a contratação temporária de 50 técnicos de saneamento, 50 agentes de saneamento e 20 operadores de subestação. Atualmente, o órgão responsável pelo abastecimento de água e saneamento estaria operando com menos de 60% do quadro técnico ideal: há pouco mais de 1.100 funcionários, uma defasagem de 800 servidores, nos cálculos do Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (Simpa). 

Melo pretende conceder o Dmae para a iniciativa privada, como pretendia o ex-prefeito tucano Nelson Marchezan, que teria sucateado o departamento deliberadamente, conforme relatório do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS)

Entre as consequências já observadas da falta de pessoal está uma maior demora na solução de problemas. Em 2017, a meta de atendimento de serviços operacionais pelo Dmae era de 24 horas, tempo agora estimado em 36 horas. 

A qualidade dos profissionais e dos serviços também preocupa os municipários, com o aumento das terceirizações e aposentadorias aceleradas pela Reforma da Previdência. “Há uma perda do conhecimento com os colegas que vão saindo, e a dificuldade de transmitir esse conhecimento. As pessoas contratadas pela concessionária não terão essa escola. Há uma necessidade de qualificação de mão de obra que o mercado não tem”, alertou Edson Zomar, funcionário da autarquia e diretor do Simpa.

Zomar afirma que os baixos salários das terceirizadas afastam funcionários qualificados e precarizam os serviços. “São anos de aprendizado para executar adequadamente a manutenção de uma rede de água e esgoto”, disse.

Os municipários tentaram, sem sucesso, agendar duas reuniões com o gabinete de Melo, para argumentar que um empoderamento do Dmae seria benéfico para a própria gestão. “Esse cenário de indecisão nos deixa paralisados. Perdemos autonomia, não conseguimos fazer um planejamento com um horizonte maior. Sem saber o que fazer no futuro, deixamos de fazer projetos maiores”, afirmou Sandra Darui,  coordenadora do Conselho de Representantes Sindicais (Cores) do Dmae. “Mesmo assim conseguimos atender em situação de normalidade. A cidade de Manaus, com o serviço de saneamento privatizado há cerca de 20 anos, não tem nenhum dado que chega à qualidade do Dmae”, observou Edson Zomar.

Mudança de modelo de gestão

Diretor-geral do Dmae, o advogado Alexandre Garcia admite uma notória perda da força de trabalho nos últimos anos, mas explica que muitos cargos têm sido supridos por terceirizados desde 2014. “Quando fazemos a análise de números frios, é preciso ter esse cuidado de considerar o modelo de gestão. Houve uma mudança de política, e optou-se por terceirizar mais. Desde 2014 e 2015, o Dmae optou por não ter mais leiturista, e sim terceirizar esse serviço. Não tem por que repor esse quadro”, explicou. Garcia também disse que as funções de vigilância, portaria, limpeza e transporte também foram terceirizadas. Para o deslocamento de servidores, o Dmae hoje aluga veículos de passeio.

As contratações aprovadas nesta quarta-feira devem vigorar por 180 dias, prorrogáveis uma vez por igual período. O texto prevê a criação de cargos efetivos de agente de saneamento e de técnico de saneamento, anunciando abertura de concurso público. 

Garcia assegura que a gestão atual tem buscado suprir as demandas do departamento. “A Smap (Secretaria Municipal de Administração e Patrimônio) fez um concurso e está homologando, há vagas ali para o Dmae. Nesse meio tempo, conseguimos aprovação legislativa para contratos emergenciais, especialmente em eletromecânica, para o cuidado com as casas de bombas. Vários movimentos vêm sendo executados no sentido de repor”, disse o diretor-geral. 

Novo governo federal pode reverter tendência privatista

A precarização do Dmae se intensificou na gestão de Nelson Marchezan e chamou atenção do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS). Durante os quatro anos da gestão do tucano, o nível de capacitação dos trabalhadores diminuiu, o quadro de funcionários caiu para o menor índice desde 2007 e as interrupções do abastecimento de água aumentaram. Marchezan foi notificado da omissão, mas não se manifestou. O TCE segue debruçado na inspeção da gestão tucana e aguarda desenho do modelo de concessão de Melo para análise, informou a assessoria de imprensa do órgão.

De acordo com Edson Zomar, a atual administração dá continuidade ao modelo de Marchezan. “A concessão é uma forma facilitada de privatização, como um arrendamento sem risco de prejuízo e com financiamento público. E feita em cima de um órgão que tem todas as condições de atender plenamente a população em termos de abastecimento de água e saneamento, mas que tem sido precarizado e sucateado de forma claramente proposital”, disse o diretor do Simpa.

A prefeitura tem estudado pelo menos dois modelos de concessão: 1) a concessão total de água e esgoto, por 35 anos, exceto atividades de drenagem; ou 2) a concessão parcial apenas do tratamento de esgoto, caso em que o Dmae ainda capturaria e distribuiria a água. 

A coordenadora no Cores-Dmae criticou ambas as alternativas. “Segundo o prefeito, a concessão prevê uma sobra de dinheiro para a drenagem. Mas, em ambos os estudos que a gestão apresentou, sobraria em torno de R$ 100 milhões, que é o que gastamos agora só para manter e operar a drenagem. Não teria investimento novo”, observou Sandra Darui. 

Para frear os projetos de concessão do Dmae, os municipários confiam numa retomada de investimentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em autarquias e companhias públicas. Desde 2016, com o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), os desembolsos do banco não apenas reduziram drasticamente (de R$ 190,4 milhões em 2013 para R$ 55,3 milhões em 2019), como também passaram a se concentrar em planos de concessão e privatização de serviços públicos.

“Esperamos que uma mudança política no BNDES possa reverter a concessão. Sabemos que existem interesses vinculados não exatamente ao saneamento, mas ao lucro. Temos a expectativa de uma mudança em janeiro”, projetou Zomar.

O diretor-geral do Dmae, Alexandre Garcia, estima que a autarquia precisaria investir cerca de R$ 2 bilhões para cumprir, até 2033, as metas de atender 99% da população com água tratada sem intermitência e estender a coleta e o tratamento de esgoto doméstico a 90% dos porto-alegrenses. 

Sem incentivo federal, porém, os planos de concessão ganharam força. “O Dmae investe entre R$ 120 e R$ 130 milhões por ano, o que é insuficiente para cumprir o novo marco legal. Estamos abertos a qualquer modelo. Se tivesse dinheiro do governo federal para cumprir, mas não há. O que houve foi uma política no sentido da iniciativa privada”, completou Garcia.

Durante a campanha deste ano, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prometeu ampliar os incentivos do BNDES e redirecionar a política do banco, com menos financiamentos para grandes empresas e maior apoio a cooperativas, pequenos e médios empreendedores.

Serviços de água estão sendo reestatizados no mundo

A concessão do Dmae ocorreria na contramão da experiência internacional. Um mapeamento realizado por 11 organizações de trabalhadores identificou 835 casos de reestatização de serviços no mundo inteiro desde a virada do século, sobretudo nos setores de energia (311 casos) e água (267 casos). A tendência se justificou pela constatação de que a concessão piorou os serviços e trouxe uma série de problemas, como violações trabalhistas, contas mais caras e ausência de estratégias quanto às mudanças climáticas.

Em julho de 2021, a empresa britânica Southern Water foi declarada culpada e multada em 90 milhões de libras por despejar nas águas costeiras da Inglaterra entre 16 bilhões e 21 bilhões de litros de esgoto venenoso. 

A privatização também foi um fracasso em termos financeiros. Após a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher absolver as dívidas do setor em 1989, a indústria da água e esgoto do Reino Unido voltou a acumular dívidas que somam 48 bilhões de libras, mesmo com a conta de água aumentando 40% acima da taxa de inflação no período. De acordo com uma pesquisa da Universidade de Greenwich, a quantia foi embolsada pelos acionistas, em vez de utilizada para consertar vazamentos ou executar obras de tratamento. 
Há paralelos na América Latina. Um estudo da Universidad Nacional de San Martín mostrou que a privatização dos serviços de água e saneamento de Buenos Aires, na década de 1990, levou a “sérios descumprimentos” das metas de cobertura. Além de impor diversos incrementos tarifários, a concessionária Aguas Argentinas teria privilegiado áreas de maior capacidade aquisitiva, em detrimento da população mais vulnerável da cidade. O serviço foi reestatizado em 2006.

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