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Decisões judiciais riscam o feriado do Dia da Consciência Negra de estados e municípios

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Decisões judiciais riscam o feriado do Dia da Consciência Negra de estados e municípios Celebração do Dia da Consciência Negra no Centro do Rio de Janeiro, em 2018. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil/Divulgação

Idealizada por intelectuais em Porto Alegre, em 1971, data chegou a ser adotada como feriado em 700 municípios, mas contestações nos tribunais reduziram sua abrangência para cerca de 500. Na Capital gaúcha, lei já foi promulgada em duas oportunidades, mas nunca vigorou.

Foi em Porto Alegre que, em 1971, apareceu pela primeira vez no Brasil a sugestão de registrar o 20 de novembro como uma data de valorização da população negra do país – uma referência à morte de Zumbi dos Palmares, em 1695. A Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul também foi pioneira ao assegurar em lei a efeméride como o Dia da Consciência Negra, em 1987. Porém, o estado gaúcho nunca parou oficialmente neste dia.

Em Porto Alegre, nas duas ocasiões em que o 20 de novembro foi proclamado feriado (em 2003 e 2015), o Sindicato dos Lojistas do Comércio de Porto Alegre (Sindilojas) apelou na justiça e conseguiu derrubar a legislação. No que aliás, a Capital parece estar novamente fazendo escola: de lá para cá, o dia de descanso vem sendo derrubado nos tribunais em vários estados do Brasil, geralmente a pedido de sindicatos patronais.

No dia 14 de novembro de 2019, a justiça mineira cancelou o feriado municipal em Uberaba. A decisão atendeu à solicitação do Sindicato do Comércio da cidade. Em outubro, três entidades comerciais ganharam uma ação direta de inconstitucionalidade no Maranhão, que perdeu o feriado estadual vigente desde 2017 – com isso, as 217 cidades do estado foram atingidas. No Paraná, Londrina passou pela mesma situação em 2013.

Com base em dados da Fundação Cultural Palmares, calendários oficiais, decisões judiciais e legislações estaduais e municipais, a reportagem apurou que há em torno de 500 cidades brasileiras com feriado no 20 de novembro. São cinco unidades federativas com feriado estadual (Alagoas, Amazonas, Amapá, Mato Grosso e Rio de Janeiro), conformando 413 municípios. As cidades baianas de Serrinha, Alagoinhas e Camaçari possuem legislações municipais, assim como a capixaba Guarapari e a mineira Betim. O estado com mais feriados municipais no Dia da Consciência Negra é São Paulo: contamos 96, embora esse número possa ter sofrido modificações por decisões judiciais recentes. Os números obtidos pelo levantamento são bem menores do que os apresentados em anos anteriores na imprensa e até mesmo pelo Governo Federal, que em 2014 chegou a dizer que o Dia da Consciência Negra era feriado em mais de mil cidades. 

Conquista histórica, derrota recente

A efeméride foi proposta pela primeira vez em 1971, por estudantes universitários de Porto Alegre, cuja principal referência era o poeta Oliveira Silveira. Eles queriam encontrar um símbolo que substituísse o marco da abolição da escravatura, celebrada no 13 de maio, que deixou os ex-escravizados abandonados à própria sorte. “Eu entendia, e ainda entendo, que a Lei Áurea era vazia”, defende o advogado Antônio Côrtes, o único remanescente do grupo. Em seguida, movimentos negros de todo o país abraçaram o 20 de novembro para celebrar o histórico de resistência da população negra. 

Em suas decisões para derrubar leis locais e regionais de celebração da data, os juízes argumentam que a criação de feriados civis caberia apenas à União, conforme prevê a lei nº 9.093, de 1995. Segundo esse raciocínio, os municípios só podem ter quatro feriados religiosos, em “dias de guarda”. Já os estados poderiam declarar feriado em sua “data magna” – por aqui, é o 20 de setembro, em memória à Guerra dos Farrapos, que tem como um de seus episódios o massacre dos Lanceiros Negros. “O Rio Grande do Sul se vende como um estado de origem europeia e oculta a importância da mão de obra, do trabalho de quem construiu este espaço, que foram os negros e os indígenas”, ressalta Winnie Bueno, mestra em direito e ativista negra. 

Desembargador gaúcho contesta lei federal

Na sessão que invalidou a lei municipal de Porto Alegre de 2003, o desembargador Ranolfo Vieira discordou da tese de que compete exclusivamente à União decretar feriados civis: “A referência a feriados religiosos, a dias de guarda, não tem sentido, ou não tem o sentido estrito que se lhe pretende atribuir”, escreveu.

Porém, Vieira foi voto vencido. À exceção de Rui Portanova, que manteve sua posição pró-feriado novamente em 2016, os demais magistrados seguiram o relator. O desembargador Paulo Moacir Aguiar Vieira chegou a propor a instituição do “dia da integração racial” em vez do da Consciência Negra, porque “todos os dias se vive essa bendita realidade no Brasil”. Na sequência, lamentou a situação de países luso-africanos: “As coisas não iam bem em Angola, não iam bem em Moçambique, todo mundo sabe, mas se tornaram terríveis no momento em que movimentos radicais lá assumiram o poder e enxotaram os brancos de lá.”

Ao contrário da primeira lei, a legislação municipal de 2015 consagrou o 20 de novembro como “Dia da Consciência Negra e da Difusão da Religiosidade”. Também não deu certo, e o caráter religioso foi desconsiderado por não constituir “dia de guarda” – conceito ligado ao catolicismo –, como manda a lei federal.

Em janeiro de 2019, a Câmara Municipal de Porto Alegre entrou com recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal (STF) para manter o feriado. A ação foi rejeitada pela ministra Cármen Lúcia.

Impasse jurídico

Os críticos do feriado da Consciência Negra embasam sua alegação em dois pilares fundamentais: as leis estaduais e municipais seriam inconstitucionais, porque versam sobre algo que não lhes compete; e um novo feriado prejudicaria o faturamento do varejo. Mas a questão é mais complicada. Além de contestar trechos da lei nº 9.093, que violariam a laicidade do Estado, os defensores do feriado se apoiam nas poucas decisões favoráveis à causa: duas decisões do STF, uma do ano 2000 e outra de 2017. Na primeira, o parecer unânime foi de que havia “impossibilidade jurídica” na ação que tentava extinguir o feriado na capital fluminense. Já a segunda tratou do feriado aprovado para todo o estado do Rio de Janeiro. Em seu despacho, o ministro Alexandre de Moraes explicou que sequer julgaria o mérito da questão, porque estava “ausente a legitimidade” da Confederação Nacional do Comércio para opinar sobre leis gerais com conteúdos de aspecto histórico-cultural.

Independente de serem milhares ou centenas, muitos municípios podem perder seus feriados da Consciência Negra caso prevaleça a tese das associações comerciais. “Somente uma decisão de mérito da questão apreciada pelo conjunto de ministros do STF é que vai pacificar tudo”, avalia Côrtes. “Nossa alternativa agora é que o governo – outro que possa existir, porque nesse aí não dá para confiar – decrete o 20 de novembro como feriado nacional”, diz. Outra opção seria aprovar uma legislação específica no Congresso. Atualmente, há um projeto de lei do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) pronto para ser votado na Comissão de Educação, Cultura e Esporte. Na Câmara, as proposições que tratam do assunto estão paradas.

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