Retrato escrito

As charqueadas pelotenses e os negros

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As charqueadas pelotenses e os negros

As charqueadas – grandes propriedades rurais que processavam carne, couro e ossos de cerca de 500 bois por dia – tiveram lugar em Pelotas entre 1780 e 1910, data em que começam a declinar, a partir do advento dos frigoríficos. O auge dos estabelecimentos charqueadores deu-se ao longo do século XIX, sendo os responsáveis pela opulência econômica, arquitetônica e cultural da cidade sulina no período. No entanto, sempre é preciso sublinhar o caráter escravocrata da força de trabalho empregada nesses empreendimentos.

Ester Gutierrez, no verbete “Charqueadas”, do Dicionário de história de Pelotas, destaca os traços repugnantes dos saladeiros: “Além de toda a rudeza do trabalho e do tratamento dado à população servil, do mau cheiro continuamente reinante, da sujeira e da presença de feras e animais peçonhentos e pestilentos, o espaço interno da produção do charque acompanhava o quadro macabro, tétrico, fétido e pestífero que dominava o seu meio ambiente”. Quadro parecido é desenhado também na ficção, que pode ser mais dura do que a realidade. Neste sentido, na literatura sul-rio-grandense do século XIX, talvez nenhum texto seja tão incisivo quanto “Pai Felipe: um episódio de charqueada”, conto publicado em duas partes na Revista Mensal da Sociedade Partenon Literário, de Porto Alegre, em janeiro e fevereiro de 1874. A narrativa é de um dos escritores mais interessantes de quantos passaram pelas páginas do Partenon, o pelotense Vítor Valpírio, pseudônimo de Alberto Coelho da Cunha (1853-1939).

Em “Pai Felipe”, acompanha-se o sofrimento dos escravos na labuta infernal. O começo é contundente: “Vai a safra a todo o rigor e a negrada estrompada pelo cruel serviço da charqueada geme e resmunga sobre o boi que a perita faca acaba de sangrar”. De noite, sob o “tormentoso e gélido minuano”, o descanso é quase impossível nos galpões mal-ajambrados: “A esta hora em que os felizes aconchegando a coberta ao corpo tranquilos saboreiam o macio calor da cama, arrebentados de cansaço e de frio sofrem a dureza da sorte os desvalidos filhos da escravidão”. A violência e a imundície que cercam as charqueadas, anotadas por Gutierrez, aparecem no conto, como em “Os mugidos lúgubres das reses que o sangrador vai uma a uma enxugando, enterrando-lhe até ao cabo a faca na nuca” ou “Pelos regos sujos da charqueada que conduzem ao rio, o sangue em ondas negras corria velozmente em borbotões”.

Duas personagens negras destacam-se, em contraposição ao severo capataz Manuel (Maneca) Gomes: o experiente carneador Pai Felipe, doente, mostra-se saudoso de sua África natal; já Manuel Chimango, ao ausentar-se da senzala para encontrar com um amigo, é pego por Maneca. Como punição pela saída indevida, o feitor inflige noventa chibatadas a Chimango, que desfalece: seu corpo “transformara-se em uma chaga; no laço esmigalhavam-se pedaços de carne”. No final, não resta aos dois outra solução que não a morte, diante de uma vida tão indigna: Chimango, depois de sair do hospital, comete suicídio; simultaneamente, Felipe, depois de se contorcer em dores, devido ao agravamento de sua enfermidade, falece.

O conto aborda, ao mesmo tempo, dois aspectos violentos das charqueadas, o tratamento aviltante dado aos escravos e a mortandade do gado, que se coadunam de forma a denunciar a equiparação da vida dos negros à de vacas e bois e as condições precárias e nauseantes. Isso se observa no exemplar trecho final, com a agonia derradeira de Pai Felipe: “A seus pés esperneando a espadanar sangue em borbotões o novilho estrebuchava. Súbito estacou nas vascas da agonia. À boca lhe assomou uma escuma sanguinosa; o aneurisma arrebentara-se; os seus olhos viraram-se e reviraram-se; ele fez um esgar medonho; deu um ronco prolongado e profundo, e sobre o novilho agonizante caiu inteiriçado e morto”.

Assim, o texto ilumina algo às vezes esquecido: as charqueadas trouxeram riqueza e progresso a Pelotas, mas é preciso ressaltar sempre que elas se assentaram na servidão, na opressão e no derramamento de sangue escravo.

Edições utilizadas:

  • LONER, Ana Beatriz et al. (Org). Dicionário de história de Pelotas. Pelotas: Ed. da UFPel, 2010. p. 58-60.
  • VALPÍRIO, Vítor (Alberto Coelho da Cunha). Pai Felipe: um episódio de charqueada. Revista Mensal da Sociedade Partenon Literário, Porto Alegre, n. 1, p. 561-565, jan. 1874; n. 2, p. 605-608, fev. 1874.

Mauro Nicola Póvoas é doutor em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e professor de Literatura na Universidade Federal do Rio Grande (FURG).

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